Ucrânia

Em retaliação ao ataque a ponte, Rússia dispara mais de 70 mísseis na Ucrânia

Os mísseis foram disparados contra Kiev e nove cidades, atingiram alvos civis e danificaram infraestrutura. Pelo menos 14 pessoas morreram. Putin promete "duras respostas"

Moradores de Dnipro, cidade situada 392km a sudeste de Kiev, observam cratera aberta pelo impacto de artefato russo em avenida -  (crédito: Dimitar Dilkoff/AFP)
Moradores de Dnipro, cidade situada 392km a sudeste de Kiev, observam cratera aberta pelo impacto de artefato russo em avenida - (crédito: Dimitar Dilkoff/AFP)
postado em 11/10/2022 06:00 / atualizado em 15/01/2024 12:41

A vingança pela sabotagem contra a Ponte Kerch, que liga a Rússia à Península da Crimeia, anexada em 2014, riscou os céus da Ucrânia e atingiu o coração de Kiev, além de nove cidades da ex-república soviética. Uma chuva de 75 mísseis deixou 14 mortos e 97 feridos, danificou a infraestrutura elétrica e lançou 15 regiões do país na escuridão. O presidente russo, Vladimir Putin, confirmou que os ataques foram uma resposta contra o que classificou como "ato de terrorismo". "Ataques maciços com armas de alta precisão de longo alcance foram realizados contra a infraestrutura de energia militar e de comunicações da Ucrânia", declarou, durante encontro televisionado com o Conselho de Segurança da Rússia.

Putin ameaçou a ex-república soviética, invadida por suas forças em 24 de fevereiro: "Se continuarem com as tentativas de realizarem ataques terroristas em nosso território, as respostas da Rússia serão duras". O ex-presidente Dmitri Medvedev, número dois do Conselho de Segurança da Rússia, foi enfático ao citar o objetivo de Moscou na guerra. "Este foi o primeiro episódio. A meta de nossas futuras ações deveria ser o completo desmantelamento do regime político da Ucrânia."

A comunidade internacional repudiou, de forma unânime, a escalada do conflito. "Os Estados Unidos condenam veementemente os ataques com mísseis da Rússia em todo o país, inclusive em Kiev. Eles mataram e feriram civis, e destruíram alvos sem propósito militar. Mais uma vez, demonstram a total brutalidade da guerra ilegal do senhor Putin ao povo ucraniano", afirmou o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. "Esses ataques apenas reforçam ainda mais nosso compromisso de permanecer ao lado do povo da Ucrânia pelo tempo que for necessário. (...) Apelamos novamente à Rússia para que encerre essa agressão não provocada imediatamente e retire suas tropas da Ucrânia", acrescentou. 

Promessa

Também ontem, Biden telefonou para o colega ucraniano, Volodymyr Zelensky, e prometeu sistemas de defesa antiaérea avançados. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, se disse "profundamente chocado" e denunciou "outra escalada inaceitável da guerra". "Como sempre, os civis pagam o preço mais alto", lamentou.

Ao apresentar uma resolução na ONU condenando a anexação de quatro regiões —  Donetsk e Luhansk (leste), Zaporizhzhia e Kherson (sudeste) —, a Ucrânia chamou a Rússia de "Estado terrorista". "A Rússia mostrou mais uma vez que é um Estado terrorista que deve ser dissuadido da forma mais contundente possível", declarou o embaixador ucraniano Sergiy Kyslytsya. Os líderes do G7 — grupo dos sete países mais industrializados do mundo — debaterão hoje a situação na Ucrânia, segundo o governo da Alemanha, ao anunciar que a entrega de um primeiro sistema de defesa antiaérea à Ucrânia é "iminente". 

Em um desdobramento considerado preocupante por especialistas, o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, garantiu que a Ucrânia prepara um ataque contra seu país e anunciou o deslocamento de tropas, sem especificar o destino. "Devido ao agravamento da situação nas fronteiras ocidentais da União (Rússia-Bielorrússia), concordamos em implantar um agrupamento regional da Federação Russa e da República da Bielorrússia", disse Lukashenko. "Se você quer paz, prepare-se para a guerra", acrescentou.

Em vídeo gravado próximo à Universidade Shevchenko, Zelensky chamou Putin de "o líder dos terroristas", acusou-o de mentir "como sempre" e afirmou que instalações civis, culturais e educacionais foram atingidas pelos mísseis. O líder ucraniano mostrou um playground situado no Parque Shevchenko que foi transformado em uma cratera por um dos foguetes. 

Tensão e medo

A segunda-feira foi de tensão e de medo para milhões de ucranianos. Tetyana Shevchuk, 32 anos, advogada da organização não governamental Centro de Ação Anticorrupção, acordou às 6h47 (0h47 em Brasília) com o barulho das sirenes antiaéreas. Imaginou que seria um dia rotineiro, assim como os últimos 229, desde o início da invasão russa. Ela decidiu tomar o café da manhã antes de seguir para o escritório, na região central de Kiev. "Quando eu estava pronta para sair de casa, escutei diversas explosões. Percebi que a capital era alvo de graves ataques e que não poderia trabalhar hoje (ontem). Entrei em contato com meus colegas e amigos e passei a monitorar as redes sociais em busca de notícias", relatou ao Correio. Os bombardeios continuaram até 12h24 (hora local). Houve novas ondas, entre 15h14 e 17h09 e entre 21h53 e 22h21. As autoridades aconselharam os moradores a não saírem de suas casas.

Oleh Maksymiak, 21, assistente da parlamentar Inna Sovsun, desembarcou do trem, na capital ucraniana, às 9h30, procedente de Lviv. "Durante a viagem, meus colegas me informaram sobre as explosões em Kiev. Um foguete caiu perto da estação. Tive sorte de ter me escondido cinco minutos antes", contou à reportagem. Ele correu imediatamente para a estação de metrô, que ficou lotada.

"Não havia lugar para me sentar, e as pessoas continuavam chegando, mais e mais a cada minuto. Quando o sinal de internet aparecia, podíamos ler o que estava acontecendo do lado de fora. Soubemos que outras cidades eram atacadas. Alguns de nós começamos a chorar. Foi então que escutei alguém cantar o hino nacional da Ucrânia. Era uma voz de mulher, com um tom de ópera. De repente, todos começamos a aplaudir e a gritar 'Slava Ukrayini! Heroyam Slava!' ('Glória à Ucrânia! Glória aos Heróis!')", lembrou. Maksymiak ficou retido na estação de metrô durante horas. Quando chegou ao dormitório, não havia eletricidade, que somente foi restabelecida por volta das 18h. 

"Nós, ucranianos, temos as emoções endurecidas, depois de tantas experiências acumuladas desde o início da guerra, mas esta manhã foi chocante", admitiu ao Correio Peter Zalmayev, diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative (em Kiev). Ele disse que mora perto de uma das áreas impactadas. "Os mísseis literalmente sobrevoaram meu prédio e pude escutá-los. Fiquei em dúvida se eram caças ou foguetes. Cinco segundos depois, caíram. Houve provavelmente oito alvos destruídos na cidade. O playground onde meus filhos costumavam brincar foi golpeado. É óbvio que o ódio pelo inimigo aumenta, assim como a determinação em expulsá-lo. Esperamos uma resposta incisiva do Ocidente, que incluiria sanções e o envio de mísseis de longo alcance e sistemas de defesa antiaérea."

Vozes de Kiev

Tetyana Shevhuck, advogada ucraniana, moradora de Kiev
Tetyana Shevhuck, advogada ucraniana, moradora de Kiev (foto: Arquivo pessoal )

"O objetivo da Rússia foi aterrorizar o nosso povo, mostrar que ninguém está a salvo, nem mesmo as pessoas distantes da linha de frente da batalha. Mas isso teve efeito imediatamente contrário entre os ucranianos. Os ataques de hoje (ontem) somente me fizeram sentir mais raiva. Os russos não obedecem a nenhuma norma de guerra, a nenhuma conduta moral. Apenas querem matar gente."

Tetyana Shevchuk, 32 anos, advogada

Oleh Maksymiak, assessor parlamentar em Kiev
Oleh Maksymiak, assessor parlamentar em Kiev (foto: Arquivo pessoal )

"Não senti medo. Durante a primavera, vi mísseis caírem a poucos metros de onde eu estava. Então, tenho me acostumado a isso. Ao invés de medo, senti ódio. Tive raiva dos russos. Porque eles arruinaram meu dia, e arruinaram (e continuam a fazê-lo) as vidas as outras pessoas."

Oleh Maksymiak, 21, assistente parlamentar

"Escutei cinco ou seis explosões, que ocorreram a cerca de 1km ou 2km de minha casa. Os bombardeios foram muito intensos, e duraram por seis ou sete horas, sem interrupções. Neste período, o metrô deixou de funcionar. À noite, a cidade tornou-se semimorta. Não havia eletricidade, e todos os cafés e pequenos estabelecimentos comerciais fecharam. Você não via ninguém nas ruas, mas também não havia pânico."

Olexandre Pavlichenko, 58, diretor da União Ucraniana Helsinki de Direitos Humanos

Escalada perigosa

"Os ataques de hoje (ontem) foram uma resposta forçada da Rússia aos bombardeios da Ucrânia nas regiões anexadas pelos russos e à sabotagem da ponte, que tem um sentido simbólico muito grande para os dois lados. A Crimeia foi praticamente o início dessa situação toda. Por ter sido russa até 1954 e abrigar a frota da Rússia, tornou-se, em 2014, o símbolo máximo do choque entre Moscou e Kiev. Por diversas vezes, o presidente Vladimir Putin alertou que jamais aceitaria uma agressão à Crimeira. Por isso, foi obrigado a realizar esses ataques massivos. 

Por um lado, é uma posição desesperada de Putin, pois não pode aceitar os avanços da Ucrânia nas regiões que anexou. Por outro lado, trata-se de mais uma escalada da guerra. A retórica está cada vez mais crescente, com a ameaça de uso de armas nucleares, táticas ou não. A Bielorrússia, hoje, enviou tropas à sua parte ocidental, na fronteira com a Polônia. É outro desdobramento preocupante. 

No fundo, Putin quer acabar a guerra logo. Ele deseja que a Ucrânia simplesmente aceite o status quo de que os russos tomaram aquelas regiões em troca de um cessar-fogo. Acho que ele quer estabilizar essas novas fronteiras, a fim de que a Rússia possa começar a normalizar suas relações internacionais. As sanções têm impactado a economia russa e criado muitas distorções. A situação é muito imprevisível, especialmente com a questão da Bielorrússia, que ameaça a Polônia. A coisa está se tornando mais séria."

Angelo Segrillo, professor de história da Universidade de São Paulo (USP)

  • Bombeiro ajuda mulher ferida na cabeça durante os bombardeios
    Bombeiro ajuda mulher ferida na cabeça durante os bombardeios Foto: Serviço de Emergência do Estado da Ucrânia/AFP
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