China

Em raro ato de rebeldia, moradores tomam ruas de Pequim e Xangai

Em raro ato de rebeldia, moradores tomam as ruas de Pequim, Xangai e outras cidades para cobrar o fim da "política de zero covid" e a queda do Partido Comunista Chinês. Incêndio em região afetada pelo confinamento incitou a ira popular

Rodrigo Craveiro
postado em 28/11/2022 06:01
 (crédito: Noel Celis/AFP)
(crédito: Noel Celis/AFP)

Três dias depois de um incêndio matar 10 pessoas em um prédio de Urumqi, na província de Xinjiang (noroeste), raros protestos contra o Partido Comunista Chinês e o presidente Xi Jinping foram registrados em Pequim e em Xangai e se espalharam para outras cidades, incluindo Wuhan (centro) — foco inicial da pandemia da covid-19. Aos gritos de "Queremos valores universais"; "Queremos liberdade, igualdade e democracia"; e "Xi Jinping e Partido Comunista, renunciem", centenas de pessoas se manifestaram contra a "política de zero covid" implementada pelo regime.

Os chineses culpam o rígido lockdown, imposto há quase três anos, pela tragédia em Urumqi, e acreditam que o confinamento dificultou o resgate dos moradores. Nas redes sociais, surgiram denúncias de que muitas pessoas foram impedidas de sair do complexo residencial de Urumqi e que as portas de emergência estariam bloqueadas. A cidade está sob fortes restrições anticovid-19 desde agosto passado. 

Em Pequim, cerca de 100 pessoas foram vistas, na noite de ontem, marchando em direção à Praça da Paz Celestial, palco de um massacre de estudantes pró-democracia, em 1989. "Não aos testes de covid, sim à liberdade", clamavam. Xangai, uma metrópole de 25 milhões de habitantes, assistiu a uma manifestação silenciosa, enquanto completava dois meses de lockdown que levaram a uma escassez de alimentos. Os protestos se concentraram perto da rua Wulumuqi — o nome em mandarim da cidade de Urumqi. "Xi Jinping, renuncie! Renuncie!", pediam as pessoas. 

Em várias localidades, muitos manifestantes apenas seguravam papéis e cartazes brancos, sem qualquer mensagem, como forma de expressarem sua insatisfação. Os objetos também são vistos como símbolos da censura na China. Também houve atos de rebeldia em Chengdu (sudoeste) e em Xi'an (centro). Vídeos divulgados pelas redes sociais mostravam a polícia espancando alguns manifestantes e realizando prisões, inclusive em Xangai. 

Pesquisadora da organização não governamental Human Rights Watch (China) sobre a China, Yaqiu Wang explicou ao Correio que parte da população chinesa demonstra muito nervosismo, por conta das restrições severas da "política de zero covid". "Muitos cidadãos tiveram negado o acesso aos cuidados médicos, a remédios e a outras necessidades básicas. Também estão insatisfeitos com o governo do Partido Comunista Chinês (PCC). Elas sabem que todo o controle científico e razoável da covid-19 está nas mãos da ditadura do PCC", disse. 

Yaqiu lembrou que, na China, é extremamente arriscado participar de qualquer tipo de protesto. "Manifestações com mensagens políticas são as mais perigosas. O Partido Comunista Chinês pune, de forma severa, as pessoas que exigem seus direitos, que cobram democracia ou que pedem, abertamente, o fim do regime. Por isso, esses chineses têm exibido uma coragem extraordinária", sublinhou. 

Sofrimento

O advogado e ativista de direitos humanos chinês Teng Biao — professor da Universidade de Chicago — admitiu ao Correio que os protestos "sublinham a imensa tristeza e raiva disseminada por toda a China, desde a implementação da "política de zero covid". "Quase todo o chinês tem sofrido tanto por conta da política insana de Xi Jinping para enfrentar a pandemia. O tema é de grande sensibilidade na China. Sob o regime repressivo, as pessoas não rompiam o silêncio nem se levantam", acrescentou. 

Para Teng, o fato de alguns manifestantes cobrarem a renúncia de Xi e do PCC indica que o regime "trouxe grande dor" para muitos cidadãos. "Os chineses que estão nas ruas arriscam a liberdade e mesmo suas vidas. O que eles querem é liberdade fundamental e dignidade humana", avaliou. Ele considera difícil prever os desdobramentos dos protestos, mas adverte que a comunidade internacional, as organizações não governamentais e os Estados democráticos precisam demonstrar apoio aos manifestantes. "Sem a solidariedade do mundo, o PCC fará o que quiser."

O risco de o regime intensificar a repressão e esmagar os protestos preocupa Yaqiu e a HRW. Segundo ela, a história mostra que o Partido Comunista Chinês fez coisas horrorosas para controlar a população. "A pior e mais conhecida foi o massacre da Praça da Paz Celestial, em que tanques passaram por cima de estudantes. Nos últimos anos, o PCC apostou na vigilância tecnológica, o que tornou mais fácil controlar as pessoas e coibir os protestos quando ainda envolvem poucas pessoas", disse ela. Yaqiu comentou que, ao longo da última década, o regime eliminou grupos da sociedade civil. "É muito duro para a população organizar algum tipo de movimento sustentado, pois não existe infraestrutura para isso. Sem frustração extrema, torna-se difícil manter qualquer manifestação."

A sinóloga norte-americana Mary Gallagher, professora de ciência política da Universidade de Michigan e autora de Authoritarian legality in China: Law, workers, and the state ("Legalidade autoritária na China: lei, trabalhadores e o Estado"), não subestima a importância dos protestos. "Eles sinalizam que muitos chineses não mais estão dispostos a tolerar a 'política de zero covid', especialmente os confinamentos, as testagens diárias, a incerteza econômica e o deslocamento de infectados. Esses atos são significativos pois ocorrem em cidades diferentes e em universidades", disse ao Correio.

"Protestos na China são mais localizados e têm raízes em queixas locais específicas. Além disso, as atuais manifestações saíram do foco da 'zero covid' para as limitações políticas do sistema chinês. As pessoas pedem liberdade de imprensa e de expressão, e até mesmo defendem a renúncia de Xi", concluiu Gallagher. 

 

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  • Em Xangai, policiais prendem homem e bloqueiam a Rua Urumqi
    Em Xangai, policiais prendem homem e bloqueiam a Rua Urumqi Foto: Hector Retamal/AFP
  • Funcionários vestidos com equipamento de proteção patrulham rua de Pequim em triciclo
    Funcionários vestidos com equipamento de proteção patrulham rua de Pequim em triciclo Foto: Noel Celis/AFP
  • Também na capital chinesa. um memorial com flores e velas foi montado para homenagear vítimas do incêndio em Urumqi
    Também na capital chinesa. um memorial com flores e velas foi montado para homenagear vítimas do incêndio em Urumqi Foto: Michael Zhang/AFP

Eu acho...

 (crédito: Arquivo pessoal )
crédito: Arquivo pessoal

"A China tem o sistema de censura e de vigilância tecnológica mais sofisticado do mundo. O governo eliminou as organizações da sociedade civil. É muito difícil para as pessoas organizarem qualquer movimento que seja uma ameaça ao regime. Muitas das pessoas que se manifestam hoje não sabem do massacre da Praça da Paz Celestial, pois foram alvos da censura. São jovens corajosos e eu tenho esperança por eles."

Yaqiu Wang, pesquisadora da Human Rights Watch sobre a China

 

"Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês fortaleceram o regime totalitário e o ampliaram para muitos chineses. O governo da China usará o que puder para reprimir os protestos. O partido prenderá, torturará e condenará as pessoas. Dessa vez, será difícil dominar a agitação das ruas. Esta é uma grande oportunidade para o povo chinês iniciar um movimento democrático. A comunidade internacional tem dever político e moral de apoiar essas pessoas."

Teng Biao, 49 anos, advogado e professor visitante da Universidade de Chicago

 

Objetivo: debelar o vírus

A China é a última grande economia a manter a estratégia "zero covid", com confinamentos, quarentenas extensas e testes em massa para erradicar as fontes de contágio assim que elas aparecerem. Ontem, a nação registou 39.506 infeções locais de covid-19, um número expressivo para este país de 1,4 bilhão de habitantes.

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