ENTREVISTA/ MARCIA TIBURI

"O Brasil foi um laboratório para o fascismo", diz Marcia Tiburi

A filósofa, escritora e artista plástica brasileira foi obrigada a deixar o país em 2018, depois de insistentes ameaças de morte. A professora e ativista mergulha nas artes visuais, cujas obras estarão expostas em Lisboa até 15 de janeiro

Vicente Nunes - Correspondente em Portugal
postado em 30/11/2022 09:50 / atualizado em 30/11/2022 09:53
 (crédito: Vicente Nunes - Correspondente em Portugal. CB/DA Press)
(crédito: Vicente Nunes - Correspondente em Portugal. CB/DA Press)

Lisboa — A filósofa e escritora Marcia Tiburi, que foi obrigada, em 2018, a deixar o Brasil por causa das constantes ameaças de morte que vinha recebendo de extremistas de direita, está convencida de que o país deu um freio no movimento fascista que havia ganhado força nos últimos anos. Para ela, o Brasil foi um laboratório para “esse horror”, cujos experimentos foram acompanhados com atenção pelo mundo e freados por meio da frente ampla política que ajudou a eleger o petista Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República. “O Brasil conseguiu um feito incrível, que foi puxar o freio de mão do fascismo. Mas é preciso trabalhar muito para que o fascismo não seja recuperado”, diz.

Tiburi afirma que os anos fora do Brasil, na condição de exilada, de expulsa de sua própria pátria, “cuja democracia foi destruída”, não têm sido fáceis. A fim de amenizar a dor, voltou-se para as artes visuais, as quais ela havia abandonado ainda na juventude. Todo o trabalho desenvolvido nos últimos quatro anos, unindo literatura e imagens, ela apresentou pela primeira vez em Paris, em setembro e outubro últimos, e, agora, parte das obras pode ser vista no Espaço Talante, em Lisboa. “Trazer a exposição ‘Ensaio de escrita’ para Portugal foi uma forma de me reconectar com o português, com a minha língua materna. Para quem vive exilado, a literatura, a arte, é um território para se habitado”, ressalta.

Ainda não há perspectivas de a mostra com as obras de Tiburi desembarcar no Brasil. Mas ela torce para que seja rápido. “Tem uma parte da exposição que é muito mais política e que eu acho que pode ser muito importante para esse momento em que o Brasil precisa retomar a sua democracia e consolidar suas instituições e, ao mesmo tempo, levar a sério a cultura, as artes, a educação, e saber que o fascismo também se instaura por meio da violência na linguagem. As minhas obras falam dessa violência simbólica, dessa violência das palavras”, diz ela, autora de livros polêmicos, entre eles, “Como falar com um fascista”, de 2015. A exposição de Tiburi, que conta também com aulas de filosofia, poderá ser vista até 15 de janeiro de 2023 na capital portuguesa. A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu ao Correio.

O que a exposição, que está em cartaz em Lisboa, representa para a senhora?
Essa exposição, que se chama “Ensaio de escrita”, é parte de uma mostra que eu fiz na Prefeitura de Paris em setembro e outubro deste ano. Para Lisboa, no Espaço Talante, eu trouxe as obras que têm um nexo entre literatura e imagem. Palavra e imagem são uma questão dessa exposição. O mote foi construir um livro visual, porque eu havia criado um romance que eu publiquei no Brasil, que se chama “Sob os pés, meu corpo inteiro”, em francês. Eu tinha feito esse livro visual que está exposto aqui, mas decidi também vir para cá para escrever esse livro em versão visual em português. Para mim, a passagem por Portugal é uma maneira de me reconectar com a língua portuguesa, com a nossa língua brasileira, de fazer essa ponte, porque eu estou há vários anos morando na França em função do meu exílio político. Então, a palavra também é a nossa terra. A língua também é a nossa pátria, a nossa mátria. A língua também é uma casa. E, sobretudo para quem vive exilado, a literatura, a arte, é um território para se habitado.

Quando essa arte visual ficou mais presente na sua vida?
Como eu trabalho com filosofia, com a criação de teorias, e escrevi vários romances e a literatura sempre foi muito presente na minha vida, as artes visuais, que fazem parte da minha juventude, andavam bastante distantes da minha vida no Brasil. Mas, quando eu tive que sair do país, em 2018, me voltei para as artes visuais e senti essa necessidade de unir as gramáticas, unir as linguagens. Hoje, eu chamo esse meu método, esse meu procedimento, de anagramatologia. Ou seja, é um cruzamento das gramáticas que estão presentes não apenas na minha vida, mas na vida de todos nós, a gramática visual, a gramática escrita e a gramática, vamos chamar assim, reflexiva. Filosofia, literatura e artes visuais podem se casar, podem se envolver e se entrelaçar e nos trazer outras experiências que são estéticas, mas que são também experiências subjetivas e que são, num sentido muito profundo, experiências ético-políticas. Porque esse é o nosso chão, o nosso chão humano, o lugar onde a gente se constrói, o lugar da linguagem.

 

A filósofa, escritora e artista plástica Marcia Tiburi foi obrigada a deixar o país em 2018, depois de insistentes ameaças de morte. A professora e ativista mergulha nas artes visuais, cujas obras estarão expostas em Lisboa até 15 de janeiro
A filósofa, escritora e artista plástica Marcia Tiburi foi obrigada a deixar o país em 2018, depois de insistentes ameaças de morte. A professora e ativista mergulha nas artes visuais, cujas obras estarão expostas em Lisboa até 15 de janeiro (foto: Vicente Nunes - Correspondente em Portugal. CB/DA Press)

A senhora falou que teve de deixar o Brasil em 2018. Por quê?
Eu escrevi um livro em 2015 que se chama “Como conversar com um fascista”. E foi o primeiro livro que denunciou a questão do fascismo que havia sido implantado no Brasil. A partir de então, comecei a receber muitos ataques de personagens da extrema-direita no Brasil. E, à medida que as coisas avançaram, o golpe (que derrubou Dilma Rousseff da Presidência da República), eu fiquei cada vez mais exposta. Sempre fui uma professora de filosofia muito atuante na esfera pública pela natureza dos meus temas, sempre fui muito convocada a falar. Em 2018, em função dos ataques organizados, programáticos, pelo Movimento Brasil Livre (MBL), comecei a ser muito perseguida. O Movimento Brasil Livre invadia os lançamentos dos meus livros, me ameaçava, chegaram a ameaçar de morte. Houve muitos ataques, a construção de uma campanha de difamação muito grande. E eles continuam me perseguindo hoje, me perseguindo por meio de assédio judicial. Assim como (o presidente) Jair Bolsonaro, que também me persegue através de assédio judicial. Acabei, em função de toda a complexidade do jogo político naquela época e da desmontagem, da destruição da esfera pública, ficando mais exposta e cada vez mais ameaçada e lançada numa situação muito difícil. E

Então, recebi um convite, em 2018, para sair do Brasil, feito por uma instituição chamada City of Asylum, fundada por Henry Reese, que estava ao lado de Salman Rushdie no dia que ele foi atacado a facadas. Reese criou uma instituição para proteger escritores que recebem ataques perigosos mundo a fora. Fui recebida por ele no final de 2018. Depois disso, recebi um convite de uma universidade dos Estados Unidos, onde ele tem essa instituição. E fiquei por lá, numa residência literária, esperando que as coisas melhorassem. Mas elas nunca melhoraram. Então, recebi um convite para ir para a França, para uma universidade, para um curso de filosofia na Paris 8, onde estou até hoje. A partir disso, a minha vida mudou, porque eu já não estava mais no Brasil, não era mais uma intelectual pública no Brasil. Depois, teve a pandemia, e eu comecei a me dedicar às artes visuais. Recebi uma bolsa de artista, e a vida seguiu nessa linha. Continuei, evidentemente, as minhas aulas, escrevendo meus romances, meus ensaios, mas surgiu essa nova vertente do trabalho, que foi exposto em Paris. Lá a exposição se chamava “Terra Dourada”, com uma carga política muito mais forte. Mas, para Lisboa, resolvemos trazer esse recorte ligado ao nexo entre imagem e palavra, entre literatura e universo visual.

Este ano, então, foi a sua estreia nas artes gráficas?
Sim, as artes visuais surgiram este ano sim. Eu venho trabalhando já desde o final de 2018, mas as exposições começaram a acontecer agora em 2022, e espero poder levar isso ao Brasil. Tem uma parte da exposição que é muito mais política e que eu acho que pode ser muito importante para esse momento em que o Brasil precisa retomar a sua democracia e consolidar suas instituições e, ao mesmo tempo, levar a sério a cultura, as artes, a educação, e saber que o fascismo também se instaura por meio da violência na linguagem. E as minhas obras falam também dessa violência simbólica, dessa violência das palavras.

Acredita que a exposição poderá ir para o Brasil já no próximo ano?
Olha, ela vai ser reinstalada em Paris, em outro espaço, e há convites de outros países, mas, por enquanto, não existe nenhuma possibilidade de ir ao Brasil. Mas o sonho existe, a vontade existe.

A senhora trata sobre tortura em várias das obras. Por quê?
A tortura começou a aparecer no meu trabalho como uma metáfora da violência que se faz contra os povos colonizados, contra os povos escravizados, contra as mulheres. Então, é um tipo de violência perpetrada sem ter como objetivo a morte, mas lidando sempre com o poder que pode ser exercido sobre um corpo e sobre uma psique, sobre uma mente, dentro de um cálculo. Essa violência administrada, calculada e que organiza e manipula o sofrimento. Eu acredito que isso seja uma metáfora importante para entender não apenas os períodos mais autoritários e pesados, os anos de chumbo, como a gente diz, mas também para entender todo o processo do sistema patriarcal capitalista, racista, que atua contra os nossos corpos de uma maneira mais profunda, às vezes mais sutil, às vezes mais escancarada. Eu acredito que nós precisamos colocar o dedo nessa ferida, que tem a ver também com o abuso, a violência que o universo das tecnologias faz contra nós. A violência tecnológica também é um assunto para mim.

O fato de ser mulher agrava isso?
O fato de eu ser feminista agrava. Certamente, como mulher, como personagem, a gente sofre uma misoginia, que é contumaz, instantânea, estrutural, está sempre presente. Por isso, as mulheres que têm consciência dessa condição, da sua condição de seres atacados violentamente pelo sistema patriarcal, se tornam feministas, se dizem feministas. Dizer-se feminista é dizer estou consciente e tentando enfrentar e mudar o mundo no qual eu existo.

Lula venceu Bolsonaro nas eleições, mas o Brasil vai se livrar do bolsonarismo?
Acho que o Brasil vai se livrar do bolsonarismo, que foi um fenômeno específico, centrado na figura de Bolsonaro. Mas o Brasil não vai se livrar do fascismo. Então, o bolsonarismo foi o fascismo de Bolsonaro, da época de Bolsonaro. Mas o fascismo continua, infelizmente, como continua pelo mundo. Então, nós precisamos, sem dúvida, de um projeto para um Brasil democrático, um projeto que envolva educação, cultura, arte e que nos permita nos livrarmos, nos libertarmos desse fascismo. E isso não acontecerá sem muito trabalho.

O fato de Lula ter sido eleito com o apoio de uma ampla aliança política facilita o caminho para conter os movimentos fascistas?
Existem duas questões relacionadas ao fascismo. Uma é o fascismo de Estado, do qual se puxou o freio de mão com essa frente ampla política. É importante fazer com que esse fascismo não avance, o chamado cristo-fascismo, o plano de poder da bancada da bala, da Bíblia e do boi, de agentes da violência estatal, dessa gente que busca justamente se colocar na esfera, no campo da decisão política. Isso precisa ser freado. Agora, existe um outro fascismo, que é o fascismo da sociedade civil. E esse a gente precisa de ações que podem, por exemplo, acontecer numa integração dos ministérios. Precisamos atuar na educação, na cultura e também no campo da comunicação, ou seja, nas esferas que trabalham com a produção de discursos e com a produção ideológica. É absolutamente essencial que haja um trabalho envolvendo esses três setores, educação, cultura e comunicação. Mas eu acredito também que vai ser necessário criar uma espécie de grupo de trabalho, talvez uma secretaria, que seja capaz de trabalhar, de maneira transversal, em todos os setores da sociedade para que seja possível desfascistizar e desnazificar o Brasil. Hoje, como se sabe, há mais de 500 células nazistas em operação no Brasil. Isso precisa ser desmantelado. Além disso, é preciso contar com a ajuda do sistema de Justiça, de segurança. Mas não dá para fazer isso desligado da questão da educação, da cultura, da comunicação. Ou seja, é um grande trabalho, inclusive para que isso não retorne daqui a dois anos. Veja, por exemplo, aquela gente que continua acampada ali na frente dos quartéis.

Onde foi que o Brasil errou? Como esse povo que defende ideias fascistas surgiu?
O Brasil errou no plano de educação, de cultura, de comunicação para a democracia. Para reverter isso, é preciso administrar, organizar e projetar tanto a educação, quanto a cultura e a comunicação para a democracia. Nada vai acontecer naturalmente. Agora, existe um projeto internacional, que é publicitário e despolitizante. Aliás, as duas coisas ao mesmo tempo. É um programa proveniente, sobretudo, dos Estados Unidos, com venda de um combo para diversos países, para a extrema-direita. Bolsonaro é um cliente desse tipo de projeto. Então, assim como publicitários podem vender Coca-Cola, podem vender ódio. E isso está acontecendo. É um erro da nossa parte acreditar que isso tudo surgiu espontaneamente, que é uma tendência natural da sociedade, não é. O ódio foi implantado. Quando eu escrevi “Como conversar com um fascista”, eu já falava que o ódio era implantado e contagioso. Falo isso porque passei a minha vida estudando esse tipo de assunto. Não era uma novidade para mim. Trabalhei como professora de filosofia, formada na teoria crítica, ou seja, aquilo tudo que Olavo de Carvalho falava — ele me atacava muito em 2015 —, contra os autores e os pensadores que sabiam sobre a teoria do fascismo. Conto isso porque quem conhece o funcionamento desse tipo de arranjo político fica menos surpreso com o que está acontecendo hoje. Por isso, eu, que sempre estudei esse assunto, o nazismo na Alemanha, o fascismo na Europa, um dia me dei conta de que o Brasil já tinha caído nisso também.

A senhora, teoricamente, foi arrancada de sua pátria mãe, do seu país. Como lida com isso?
Eu lido com arte, com luta, com literatura, com filosofia. Mas é muito duro, muito difícil. E uma coisa importante: quando eu tive que sair do Brasil, saí da mesma maneira que muitos professores, intelectuais, artistas, pessoas que não sabem que podem, de repente, se transformar em exiladas. Quando eu saí, não foi para me exilar. Eu não disse eu vou lá me exilar. Eu não pensei isso. Eu pensei que eu sairia um pouquinho, que viajaria e, em pouco tempo, voltaria. Só que eu nunca pude voltar. Descobri, então, que era uma exilada quando comecei a participar de grupos em que as pessoas tinham vindo de democracias destruídas. Me dei conta de que eu também tinha vindo de uma democracia destruída. Os exilados de hoje são pessoas que vêm de democracias destruídas e não, necessariamente, de ditaduras já consolidadas. São pessoas que são ejetadas, expulsas de seus países, porque lá são ameaçadas de morte. E a quantidade de pessoas que depois foram violentadas, ameaçadas e mortas no Brasil? Assim, hoje fica mais fácil entender porque eu tive que sair, porque Jean Wyllys, Débora Diniz, Larissa Bombardi e tantos outros tiveram de sair.

A senhora acredita que o Brasil ainda tem jeito?
Ah, eu sou brasileira, tenho toda a esperança. A esperança é o meu nome do meio. Eu confio em alternativas. Penso sempre em termos históricos, tanto que, atualmente, trabalho numa pesquisa sobre os ciclos do fascismo. O Brasil conseguiu um feito incrível, que foi puxar o freio de mão. Agora, temos de trabalhar para que o fascismo não seja recuperado. Acho que a consciência já surgiu. Então, acredito muito que, a partir desse momento histórico, com a vitória de Lula, acompanhado dessa frente ampla política, ou seja, de muita gente que, inclusive, era golpista, mas que se arrependeu, essas pessoas se deram conta que nós precisamos fazer com que o Brasil avance e precisamos ir juntos. Acredito que, no futuro, nós teremos um país em que as minorias políticas hétero denominadas terão mais espaço. Eu confio muito na luta feminista. E assim por diante.

A senhora vive na França, há risco de aquele país seguir pelo caminho do Brasil com Bolsonaro e eleger um represente da extrema-direita?
Acho que, depois do que ocorreu no Brasil, que é um laboratório disso tudo — foi do neoliberalismo, foi fascismo —, a derrota de Bolsonaro fez muito mal a Donald Trump e a Marine Le Pen, e fará mal ao Chega (de Portugal), ao Vox (da Espanha), e assim por diante. Bolsonaro deixou o Brasil em petição de miséria, destruiu o país economicamente, simbolicamente, moralmente, politicamente. A prova disso são as hordas de pessoas perturbadas, acanalhadas, que perderam o chão e o prumo. A violência sem igual. A França olha muito para o Brasil, assim como Portugal. Então, acredito que as coisas não tendem a não avançar na Europa, porque o laboratório já sinalizou que o fascismo não é bom para ninguém. As frentes democráticas internacionais vão continuar se constituindo contra o avanço desse horror.

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