CINEMA

Os muros entre a Ceilândia e o Iraque: documentário é destaque em Portugal

Documentário retrata a relação virtual entre uma moradora da maior cidade do Distrito Federal e um iraquiano, em que as diferenças culturais e religiosas se mostram quase intransponíveis

Vicente Nunes - Correspondente em Portugal
postado em 13/12/2022 19:04 / atualizado em 13/12/2022 21:37
 (crédito: Reprodução - Vicente Nunes/CB/D.A. Press)
(crédito: Reprodução - Vicente Nunes/CB/D.A. Press)

Lisboa — O telefone tocou numa viela da Ceilândia, maior cidade da periferia do Distrito Federal. O som do celular se misturou ao burburinho na casa de Ruth, filha de um pastor evangélico, e quase passou despercebido. A ligação era de um desconhecido, um homem que se apresentava como Momen. Apesar do estranhamento, a mulher, mãe de quatro filhos, deixou-se dominar pela curiosidade e atendeu ao chamado. Ele, que estava no Iraque, disse, logo de cara, que havia se encantado com o perfil dela nas redes sociais. Começava ali uma relação de dois estranhos que, de repente, se sentiram extremante íntimos.

O relato não é ficção. Está todo documentado pela cineasta brasileira-suíça Sonia Guggisberg e pode ser conferido por meio de sua mais recente obra, o filme Através de seus olhos, que abriu a 13ª edição do Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, no tradicional Cinema São Jorge, de Lisboa. As quase duas horas da película são angustiantes. Revelam uma relação de dependência emocional, manipulação de sentimentos, frustrações, conflitos religiosos e, sobretudo, como as barreiras culturais são, muitas vezes, intransponíveis.

A cineasta descobriu a história de Ruth e Momen por acaso — eles já se relacionavam havia quatro anos, a maior parte desse tempo por telefone. Conta Sônia: “Comecei a fazer um trabalho sobre a questão dos refugiados em 2014, quando a onda de imigração para a Europa se mostrou gigantesca. Resolvi que queria mapear isso. Passei a ir uma vez por ano à Grécia, que se tornou um dos pontos de encontro de travessia, porque é um caminho para a Europa. E fiz vários curtas-metragens e um longa que se chama Sem rosto, que reúne todos os anos de viagens. No último curta-metragem que estava fazendo por lá, intitulado A espera, estava gravando e um homem bateu nas minhas costas e perguntou se eu falava português. Eu disse que sim, porque era brasileira”. Esse homem era Momen.

A pergunta de Momen foi acompanhada de outro questionamento da cineasta: “Você também fala português?”. Ele, caracteristicamente uma pessoa do mundo árabe, disse a Sonia que havia se casado com uma mulher brasileira, que havia lhe ensinado muita coisa da língua. E lhe perguntou se gostaria de falar com ela. A diretora ficou intrigada com o que viu. “Os dois ficavam conectados 24 horas, o tempo inteiro”. Ele, então, a colocou em contato com Ruth. “Imediatamente pensei: nossa, é a minha maneira de trazer essa história (dos refugiados) para o Brasil, as conexões que eu precisava. Imediatamente, marquei com ela. Quando retornasse ao Brasil, iria encontrá-la”, relata.

Antes de se encontrar com a moradora de Ceilândia, a cineasta passou a mapear o dia a dia do iraquiano. Ela descobriu que o homem, que tinha deixado o Iraque depois de romper com a família, vivia clandestinamente dentro do campo de refugiados. “Ele conseguiu entrar ali porque houve uma falha no controle da Marinha da Grécia. Por ser clandestino, não tinha cartão de alimentação, não tinha documentação, não conseguia nem transitar tranquilamente por ali”, descreve Sonia. “Acompanhei todo o processo dele lá dentro. Acompanhei até um advogado com ele. Acabei vivendo a vida dele”, acrescenta.

Casamento

De volta ao Brasil, como prometido, Sonia foi para Ceilândia procurar por Ruth. “Assim que nos encontramos, começamos a gravar. Fui entendendo, ao longo das gravações, o quanto a coisa era mais grave do que eu imaginava”, afirma. Depois de um longo período de relacionamento virtual, Ruth, enfim, foi para o Iraque. Momen havia conseguido juntar dinheiro para pagar a passagem dela. A promessa era de que os dois se casariam, o que realmente aconteceu. O casal, contudo, teve de morar com a família do noivo, de origem curda. Sem entender uma palavra do que falavam por ali, a ceilandense se isolou. O tempo era ocupado com a leitura da Bíblia, visto como uma ofensa pelos parentes do agora marido dela.

Islâmicos radicais, pais e irmãos de Momen não aceitavam aquela relação. Passaram, então, a agredir Ruth, primeiro, verbalmente, depois, fisicamente. A mãe e a irmã deram uma surra na brasileira depois que a viram ensinando a Bíblia para o marido. Os dois começaram a receber ameaças de morte. Foram três meses de sofrimento até que Ruth decidiu voltar para o Brasil. No retorno para casa, passou por outros maus momentos. Foi presa no aeroporto de Portugal, onde fazia escala. Depois de cinco dias de detenção, sem ter contato com ninguém, foi deportada. Mesmo com todo sofrimento, acreditava que seu destino era ao lado de Momen.

Em sua casa na Ceilândia, Ruth já não vivia mais a vida dela. Afastou-se dos filhos, que passaram a morar com a avó. Nenhum dos familiares dela entendia como ela havia entrado de cabeça numa história que parecia impossível de ter um final feliz. Ao mesmo tempo que dizia não aceitar como as mulheres iraquianas eram tratadas, sem direito a voz, sem poder questionar nada, totalmente submissas, ela abria mão de tudo. Momen dizia claramente que os filhos dela não eram dele e, portanto, não os queria por perto. Ruth se isolou. A pobreza que a cerca e o descuido da casa em que mora, com lixo acumulado, resumem o estágio daquele relacionamento, do que a vida da ceilandense havia se transformado.

“Maior do que a barreira física, que é estar em dois continentes diferentes, é a religião e a cultura. Momen conseguiu aprisioná-la dentro da Ceilândia, em outro continente. Ruth abandonou os filhos na própria terra dela, sabendo que o marido estava em outro continente, para seguir as regras que ele a estava obrigando”, diz Sonia. “Ela tinha que levar uma vida islâmica dentro da favela da Ceilândia”, emenda. Segundo a cineasta, Ruth ficava conectada por telefone com Momen até quando que ele estava dormindo.

Sonia detalha: “Durante as gravações, Ruth me dizia que não podia falar porque Momen estava dormindo. Quando ela me falava isso, eu afirmava que aquela era a hora de falar. Mas não podia desligar o telefone, porque depois ele brigava com ela, não podia desligar”. Diante disso, a cineasta foi entendendo o grau da simbiose, da neurose, da dor que foi se complementando e virando uma doença. “Ela não conseguia imaginar a vida dela sem ele”, complementa. “Foram três anos de gravação, acompanhando essa história em tempo real. E é incrível como, ao longo do documentário, Ruth, que é linda, foi se desmanchando”, diz.

Sem contato

A diretora de Através de seus olhos ressalta que perdeu por completo o contato com a moradora de Ceilândia. “No meio da pandemia, ela entrou em contato comigo uma única vez. Pediu para eu lhe enviar novamente o trailer do filme. Tivemos uma longa conversa, e eu falei para ela: Ruth, acho que me arrependo, porque, de alguma maneira, incentivei vocês a levarem a história adiante. E ela falou que não, pois a história já tinha quatro anos antes de eu chegar. Ela me disse: você não tem culpa nenhuma, está tudo certo, fique tranquila, com o seu coração em paz”, conta. “Eu passei o trailer para ela, mas ela nunca viu o filme”, frisa Sonia.

Segundo a cineasta, no Brasil, a intrincada história de Ruth e Momen foi exibida uma vez no 9º Panorama de Cinema Contemporâneo Suíço e teve duas sessões no Sesc São Paulo. A perspectiva é de que, em breve, o filme entre em circuito comercial. Enquanto isso não acontece, o documentário faz carreira internacional. Em menos de um ano, participou de 20 festivais mundo afora. “Existe uma regra do cinema de que, primeiro, o filme deve fazer carreira em festivais no exterior, para, depois, ser lançado no Brasi”, explica.

Enquanto o lançamento da película não ocorre, Sonia, que também é artista plástica, dedica-se a sua exposição que está em cartaz no Centro Maria Antônia, em São Paulo, em duas salas. Numa dela, está a instalação sonora que permite uma imersão em um campo de refugiados — as travessias, as rezas, todas as etapas de vivência. Na outra, há uma instalação enorme em voal, um corredor, como uma vista para o mar. “Os refugiados estão sempre olhando para o mar.”

Newsletter

Assine a newsletter do Correio Braziliense. E fique bem informado sobre as principais notícias do dia, no começo da manhã. Clique aqui.

Cobertura do Correio Braziliense

Quer ficar por dentro sobre as principais notícias do Brasil e do mundo? Siga o Correio Braziliense nas redes sociais. Estamos no Twitter, no Facebook, no Instagram, no TikTok e no YouTube. Acompanhe!

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação