ENTREVISTA | BALTASAR GARZÓN

"A pena nunca pode ser ato de vingança", diz juiz espanhol

Magistrado responsável pela prisão do ditador Augusto Pinochet e pela condenação de repressores da Operação Condor critica lentidão do Brasil em punir crimes do regime militar e defende que punição sempre priorize a dignidade humana

Rodrigo Craveiro
postado em 11/01/2023 06:00 / atualizado em 11/01/2023 15:17
 (crédito: Arquivo pessoal )
(crédito: Arquivo pessoal )

Aos 67 anos, o juiz espanhol Baltasar Garzón tornou-se símbolo de combate à ditadura. Em 15 de outubro de 1998, ele decretou a prisão do general chileno Augusto Pinochet, que estava internado em uma clínica particular de Londres. O magistrado apenas não o julgou porque o repressor morreu, em 2006, enquanto cumpria prisão domiciliar. Doutor Honoris Causa em 30 universidades de todo o mundo e membro de diferentes organizações humanitárias, centros de direitos humanos e de mediação de conflitos, dentro e fora da Espanha, Garzón  condenou a 640 anos de prisão o argentino Adolfo Francisco Scilingo por crimes contra a humanidade. O ex-capitão da Marinha da Argentina participou dos chamados "voos da morte", em que presos políticos foram atirados, ainda vivos, ao mar, dentro da Operação Condor, uma aliança repressiva das ditaduras do Cone Sul, para perseguir e torturar opositores aos regimes. Também foi Garzón quem ordenou a extradição do torturador argentino Ricardo Miguel Cavallo, do México para a Espanha. Em entrevista exclusiva ao Correio, Garzón criticou o fato de o Brasil ainda não ter punido os crimes do regime militar (1964-1985).

"A impunidade segue reinando", lamentou. Ele defende que a punição, mesmo a torturadores ou ditadores, não deve ser tratada como vingança. "A pena deve ser sempre executada com dignidade, com respeito ao condenado", alertou. O juiz também avaliou a jurisdição universal como um mecanismo importante para julgar e punir genocídio, crimes de lesa humanidade e crimes de guerra. Garzón também atuou como assessor da Promotoria do Tribunal Penal Internacional, entre 2010 e 2011, foi membro do Comitê de Prevenção da Tortura do Conselho Europeu, além de presidente do Centro Internacional para a Promoção dos Direitos Humanos da Unesco na Argentina. É autor de 15 livros, entre eles: A encruzilhada; Não à impunidade — Jurisdição universal, a última esperança das vítimas; e Os disfarces do fascismo. 

O senhor teve papel fundamental na prisão do general chileno Augusto Pinochet. A Justiça tem sido efetiva em punir repressores e reparar as vítimas pelos crimes cometidos pelo regime militar na América do Sul?

Depende do ponto de vista, de como se olha a situação. Se observarmos o que foi feito na Argentina, no Chile, no Brasil e no Peru, ou recentemente na Colômbia, e comparamos, por exemplo, com o pouco feito na Espanha ou o quase nada em países que enfrentaram fenômenos similares, devemos concluir que na América do Sul fez-se bastante. Houve comissões da verdade e mecanismos de reparação. Recentemente, se elaboraram planos nacionais de busca de desaparecidos, etc. Também temos visto julgamentos, a começar pelos tribunais nas juntas militares da Argentina, até os mais recentes processos contra os executores diretos e pessoas com cargos de menor hierarquia. No Chile, não pude julgar Pinochet porque ele faleceu antes. No momento de sua morte, ele estava sob custódia do Estado e em prisão domiciliar. Anedoticamente, ele morreu em 10 de dezembro de 2006, o Dia dos Direitos Humanos. Um paradoxo bastante curioso... Apesar de ele não ter sido julgado, sua polícia secreta foi submetida aos tribunais e condenada em numerosos processos que seguem seu curso até o dia de hoje, ainda que as penas possam ser desproporcionalmente baixas, pois aplica-se uma norma que permite reduzir, consideravelmente, a sanção devido ao tempo transcorrido.

Isso não parece frustrante, na medida em que os crimes não sejam punidos no máximo rigor da lei?

Gera uma certa sensação de impunidade, a respeito de crimes imprescritíveis. No Peru, Alberto Fujimori foi julgado e condenado pelas violações dos direitos humanos cometidas em casos como "Barrios Altos" e "La Cantuta", ainda que atualmente se encontre em liberdade, depois de ter sido réu. Novamente, isso causa uma sensação de impunidade. No Brasil, houve um indulto a presos políticos e reparação às vítimas, a criação de uma Comissão de Mortos e Desparecidos, e uma Comissão da Verdade. No entanto, até hoje não houve justiça penal. A impunidade segue reinando, apesar de vários pronunciamentos da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Então, sei que fizeram avanços. Mas, em alguns casos, eles são insuficientes. Existe uma verdade geral sobre os sucedidos, com indicação das vítimas. Existem reparações, adotou-se medidas de não repetição, mas a Justiça não tem sido tão diligente como deveria.

Em que sentido?

As penas tem sido baixas, ou, inclusive, reina a impunidade, como, insisto, no caso do Brasil. Minha experiência me indica que, para as vítimas, o fato de relatarem, ante um tribunal, o sofrimento de que padeceram supõe ser um importante passo rumo à reparação. É muito importante que o próprio país, onde se produziram os fatos, empreenda a tarefa de julgá-los. O caso mais evidente é o da Argentina, que levou os carrascos aos tribunais. Mas também que haja juridisção universal, que permita processar aos causadores desses crimes. Dessa maneira, torna-se possível que outros países realizem os julgamentos, caso as nações onde tiveram lugar esses delitos não se encarregam de julgá-los. Muitas vítimas tiveram que pedir proteção em outros países para conseguir justiça. O adequando, insisto, é que as instituições judiciais do próprio país trasmitam a justiça. A Argentina é um caso especialmente interessante, pois realizou uma autêntica catarse, ao levar aos tribunais e condenar autores de desaparecimentos e execuções. Em outros países, ainda há muito a ser feito. É curioso que a Argentina esteja processando denúncias de crimes do franquismo, de atos criminosos produzidos durante a guerra e a ditadura franquista, ante a negativa dos tribunais espanhóis em julgar os temas pendentes. Portanto, isso constitui uma mancha para a democracia espanhola. Na Espanha, a impunidade, todavia, subsiste.

E em relação ao Brasil? A lentidão em acertar as contas com o passado coloca a Justiça em xeque?

Como eu afirmei, o processo no Brasil está incompleto. Além disso, tem sido muito lento. A ditadura acabou formalmente em 1985. A nova Constituição foi redigida em 1988. Mas foi preciso esperar até 2012 para que se constituisse a Comissão da Verdade do Brasil, que entregou o relatório à então presidente Dilma Rousseff em 7 de dezembro de 2014. Antes disso, houve algumas medidas de reparação, mas nada em termos da verdade até 2014. Isso quer dizer 26 anos de atraso. No âmbito da justiça não se avançou até o dia de hoje. Isso tem uma explicação, sob meu ponto de vista: no Brasil, a ditadura não foi derrotada, como tampouco o foi a da Espanha. Ela mesma negociou com a oposição uma transição sob sua medida. A Constituição de 1988 formalmente pôs fim a um breve período de transição de três anos. No entanto, omitiram-se reformas necessárias, que, na prática, deram uma continuidade, em certas matérias, ao regime anterior. Não houve modificações nas Forças Armadas. Sua herança institucional prolongou-se em democracia. Isso possibilitou um temor latente de um novo golpe de Estado. O mesmo se passou com o Supremo Tribunal Federal (STF), que não se renovou, mantendo todos os juízes designados durante a ditadura. De certa forma, isso garantiu a impunidade, ratificando, uma e outra vez, a vigência e a aplicação da Lei de Anistia. O STF chegou a afirmar que não teria autoridade para julgar a compatibilidade das leis pré-constitucionais com a Constituição de 1988. Somente em 1999, quando se promulgou a Lei nº 9.882, que facultou expressamente ao Supremo Tribunal a revisão da legislação pré-constitucional, se pôde corrigir esta situação. O Caso Gomes Lund, também conhecido como Guerrilha do Araguaia, sentenciado pela Corte Interamericana para impedir a anistia de agentes do Estado que cometeram crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis, aguarda julgamento há anos perante o STF para sua efetivação. Enquanto isso, os criminosos vão morrendo, impunes, e as famílias das vítimas têm a sensação de injustiça e de impunidade. 

Qual foi o impacto desse cenário na punição aos crimes da ditadura?

Essa institucionalidade autoritária, herdada da ditadura, prejudicou gravemente a busca pela verdade e pela justiça. Em suma, trata-se de uma transição pactuada com o regime ditatorial, que nunca foi derrotado. Somente com o passar dos anos se produziu um desgaste das estruturas autoritárias, que ficaram anacrônicas. A mudança democratizante também ocorre graças às instâncias internacionais e regionais. Particularmente, o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. É preciso levar em conta que uma transição negociada tem a peculiaridade de não ser um acordo autêntico livre e voluntário, pois sempre haverá a ameaça de uso da força se as coisas saírem do marco desenhado pela própria ditadura. Por isso, a abertura tem sido lenta e gradual. O caso do Brasil é muito parecido com o da Espanha. O ditador Francisco Franco morreu, tranquilamente, em sua cama. Depois dele, abriu-se um processo democratizante, mas dentro de um contexto repressor e sangrento, existindo uma tentativa de golpe de Estado, que, felizmente, fracassou, em 23 de fevereiro de 1981. Franco morreu em 1975. A nova Constituilão espanhola é de 1978, e a tentativa de golpe, como eu disse, foi em 1981. A primeira Lei de Memória Histórica é de 2007, que foi um avanço necessário, porém, insuficiente. Somente em outubro de 2022 aprovou-se a Lei de Memória Democrática, que cria um marco jurídico necessário para abordar as violações dos direitos humanos durante a ditadura e em alguns anos da democracia, de acordo com os padrões internacionais. Tanto no Brasil quanto na Espanha, o ritmo e as condições foram fixados pelo regime autoritário. Isso, somado a uma permanente ameaça de ruptura, provocou o atraso na adoção de medidas de justiça transicional.

O senhor também condenou torturadores da Argentina. A Operação Condor recebeu a resposta necessária da Justiça?

A detenção de Pinochet, em Londres; a condenação do argentino Adolfo Scilingo, na Espanha; e a extradição de Ricardo Miguel Cavallo, do México para a Espanha, e depois da Espanha para a Argentina, foram possíveis graças ao princípio da jurisdição universal. O comum é que os delitos sejam julgados pelo tribunal do local onde ocorreram os fatos. Se o crime foi cometido no Brasil, o julgamento caberia a um tribunal brasileiro. O princípio da territorialidade tem exceções. Uma delas, e talvez a mais notável, é o princípio da jurisdição universal, segundo o qual, se o delito é um crime internacional da maior gravidade, como genocídio, crimes de lesa humanidade e crimes de guerra, qualquer tribunal, de qualquer país do mundo, tem jurisdição sobre esses fatos, que são imprescritíveis. Isso porque eles interessam à comunidade internacional e a toda a humanidade. Porque esses crimes atrozes não podem ficar impunes e porque as vítimas são universais. Isso significa que os tribunais chilenos e argentinos não queriam, ou não podiam, fazer justiça. Então, os tribunais espanhóis poderiam atuar, como o fizeram, graças a esse princípio da jurisdição universal. Isso foi o que ocorreu nesses casos. Também é o que pode chegar a ocorrer se os tribunais do Brasil não cumprirem com seu dever de fazer justiça às vítimas da ditadura brasileira. Por desgraça, o êxito da aplicação desse princípio na Espanha foi tão grande que rapidamente os poderosos governos dos EUA, da China e de Israel começaram a pressionar para começarem a aplicar esse princípio. Ao fazê-lo, tiveram bom resultado. Vieram reformas, em 2009 e, depois em 2014, que foi muito mais definitiva e, praticamente, inutilizou essa poderosa ferramenta em favor das vítimas. Hoje, a Espanha não está em condições de empreender um julgamento sobre a ditadura do Brasil, mas há outros países que aplicam o princípio da jurisdição universal e que poderiam atuar. Em relação à Operação Condor, ela foi julgada pelas Justiças da Argentina e da Chile. Como a Operação Condor afetou diversos países, isso supõe que sempre existam pontos pendentes a serem resolvidos. Em julho de 2019, a sentença da Justiça italiana que condenou à prisão perpétua a 24 comandantes e militares de Bolívia, Chile, Uruguai e Peru responsáveis pelo desaparecimento de italianos na Operação Condor, entre 1970 e 1980, foi uma realidade. Esta decisão do tribunal foi recebida com satisfação pela Bolívia e com a esperança de iniciar julgamentos pendentes de crimes da ditadura.

Como rastrear e punir os responsáveis pela Operação Condor?

O Plano Condor se baseou na aplicação da doutrina de segurança nacional impulsionada pelos EUA durante a Guerra Fria, que pretendia acabar com o comunismo e os comunistas, por meio de seu extermínio, por considerá-los um inimigo externo. Comunista era qualquer pessoa que fizesse oposição à ditadura ou não encaixada dentro do modelo da sociedade ocidental cristã. Hoje, sabe-se muito sobre a Operação Condor. Graças à descoberta dos denominados Arquivos do Terror, por Martín Almada e o juiz José Augustín Fernández, no Paraguai, em 22 de dezembro de 1992, sob o concreto de uma delegacia da cidade de Lambaré. Depois, houve arquivos publicados pela CIA (Agência Central de Inteligência). Depois de revisado o documento, iniciou-se uma investigação sobre a participação do Brasil. Como tive a oportunidade de investigar a Operação Condor, posso dizer que foi no Brasil onde se localizaram as primeiras crianças desaparecidas na Argentina. Também se sabe que a primeira reunião formal, que inaugurou oficialmente a Operação Condor, foi convocada pelo diretor da Dina (Direção de Inteligência Nacional do Chile), Manuel Contreras, para 25 de novembro de 1975, em Santiago do Chile, no dia do 60º aniversário de Pinochet. Três dias depois, a ata de constituição oficial foi assinada pelos responsáveis militares dos países implicados — Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai. Ainda que o Brasil tenha participado das reuniões, apenas o fez na condição de observador. O presidente do Brasil, Ernesto Geisel, ordenou que não se firmasse nenhum documento que pudesse comprometer o país, nem que a nação se envolvesse em planos coletivos. Era preciso manter as relações bilaterais, deixando aberta a possibilidade de atuar quando fosse necessário. Apesar disso, a participação do Brasil nas coordenações prévias tinha sido crucial, com a organização de reuniões bilaterais e multilaterais, inclusive capacitando agentes de outros países em técnicas de tortura. Há uma muito famosa, o pau-de-arara, que consiste em uma amarração especial em que a vítima fica toda dobrada, com a cabeça para baixo. Como punir esses crimes? Acionando as instâncias judiciais pertinentes. Primeiro, as brasileiras. Caso não haja resultado, fica aberta a porta ao emprego do princípio de jurisdição universal. Seria interessante o estabelecimento de um tribunal regional sul-americano para julgar a Operação Condor em todas as suas dimensões. Seria interessante a criação de uma equipe multidisciplinar e internacional de investigação que permitisse a busca e a detenção dos responsáveis que ainda não foram detidos.

De que maneira o senhor analisa seu protagonismo na prisão de Pinochet?

A mensagem da prisão de Pinochet foi clara: ninguém, nenhum ditador do mundo, seja de onde for, deve ficar impune. A Justiça deve atuar. A impunidade deve ser erradicada. Os direitos humanos devem ser respeitados. Não há justificativa possível para a violação dos direitos humanos. Quanto à minha participação, originalmente eu estava a cargo da causa sobre os crimes cometidos na ditadura argentina. Outros juízes instruíam a causa do Chile. No entanto, eu acabei topando com a Operação Condor. Lá estava a figura de Pinochet como um dos impulsionadores dessa coordenação de organismos repressores do Cone Sul. Creio que há um antes e um depois da detenção de Pinochet. Hoje, todo mundo se cuida muito mais, pois sabe que, ainda que após um tempo considerável, a Justiça pode aparecer para a prestação de contas. Esses crimes, tão graves, não prescrevem. Por isso, nunca é demasiado tarde para combater a impunidade. No caso de Pinochet, ele não foi extraditado à Espanha, mas regressou ao Chile, derrotado, ainda que aparentasse ter triunfado. A Justiça fez seu trabalho e o processou. Só não foi julgado porque veio a morte.

Qual o legado da ditadura na sociedade brasileira e por que ainda se flerta com o autoritarismo?

Sempre há quem se sinta muito confortável com as ditaduras. Os militares têm o poder, a força, impõem uma certa forma de enxergar e de entender a sociedade, e reprimem qualquer dissidência. Se você comunga com essa forma de ver e de entender o mundo, tenderá a dar importância a esse evento repressivo, ou mesmo o justificará como um mal necessário para que se mantenha a mesma situação de comodidade. Isso ocorre sempre. Há aqueles que se beneficiam diretamente da ditadura, como os grandes empresários, que se enriquecem por estarem próximos ao poder e que sustentam esse regime. Também há pessoas enganadas, que creem nas mentiras do regime, apoiadas por toda uma campanha de propaganda e desinformação. O legado da ditadura, pelo menos na Espanha, é algo que se dá gratuitamente, que se afeta como um presente, como algo positivo: tem uma conotação altruísta, de mudança, de herança. A ditadura do Brasil, creio, adotou, de forma totalmente obrigatória, uma imposição militar. Ela deixou como herança e uma forma de ver e de entender o país que não é inteiramente democrática. Pelo menos, durante muito tempo não tem sido. Há pouco tempo, esquadrões da morte assassinavam crianças sem-teto, e isso é visto como algo lamentável, mas não como a aberração que é. A cada vez que há um menino pedindo esmola nas ruas, que rouba para comer, ou que não está na escola, o responsável é a sociedade, o país inteiro. Se os pais não podem ou não querem educar, há diferentes mecanismos articulados pela sociedade, pelo Estado, para atender a essa criança. Os garotos de rua devem ser vistos não como delinquentes, mas como vítimas. Eles têm direito a brincar, a frequentar a escola, a ter comida e direitos assegurados. A transição pactuada fez com que, até recentemente, se podia encontrar vestígios autoritários no Estado. As ditaduras deixam uma herança terrível em toda a sociedade onde elas se produziram. Os principais flagelos desses regimes totalitários são a desigualdade social, a pobreza, a ausência de liberdades, a imposição dos que têm mais sobre sobre a generalidade das pessoas, o retrocesso dos direitos das mulheres e dos coletivos (LGBTQIA+), o perigo de extinção para os povos originários. Além disso, no Brasil, uma ação que afeta o mundo inteiro: o desmatamento da Amazônia e a destruição do meio ambiente. Tudo isso para favorecer os interesses de umas poucas empresas multinacionais que se autorizam dessas ditaduras para conseguir seus benefícios. Ainda que não tenha sido uma ditadura, o governo de Jair Bolsonaro, de fato, praticou todos ou quase todos esses tópicos. Esses flagelos gravíssimos de uma sociedade sem ditadura, que deveriam estar erradicadas em uma democracia.

A punição aos ditadores no fim da vida deve levar em conta a dosificação da pena? Ou o senhor defende uma sentença exemplar?

A pena deve ser exemplar. Trata-se dos delitos mais graves, que merecem uma pena grave. Obviamente, sou absolutamente contrário à pena de morte. Mas, uma coisa é a extensão da pena, que deve ser sempre proporcional à gravidade do delito. Outra é sua forma de execução: a pena deve ser sempre executada com dignidade, com respeito ao condenado. Ainda que tenha sido um ditador, não deixa de ser pessoa. Como toda a pessoa, deve-se respeitar os seus direitos humanos. Uma coisa é condenar à prisão perpétua, outra, muito distinta, são o regime e suas condições. Um calabouço frio e lúgubre não é o mesmo que uma prisão domiciliar ou um lugar especial para pessoas idosas, com os devidos cuidados e atenções que sua dignidade de ser humano merece. Claro, o tratamento deve ser igualitário ao dos presos de outros delitos. Uma vez condenada, a pessoa está sob custódia do Estado, que deve garantir seus direitos. A pena nunca pode ser equivalente a um ato de vingança.

A extrema-direita tem ganhado espaço no Brasil e na Europa. Qual sua análise sobre esse fenômeno?

Explico isso em meu mais recente livro, Os disfarces do fascismo. Infelizmente, o fascismo regressou em todo o mundo. Está presente no Brasil, mas também nos EUA e na Europa. O fascismo usa armas bem conhecidas, que são tremendamente eficazes, mas destruidoras da questão social. Os discurso de medo e de ódio são muito eficientes. Mas, na mesma medida, são falsos. Trata-se de buscar a um povo vulnerável e culpá-lo de todo o mal que se sucede. Assim fizeram os nazistas com os judeus. Assim fizeram as ditaduras da América Latina com os opositores políticos. Assim fazem os EUA com os imigrantes que entram ilegalmente no país, ao menos durante a era Trump. O fascismo regressou porque levamos muito tempo acorrentando uma crise econômica após a outra. A guerra voltou à Europa, o planeta dá sinais de esgotamento, os recursos minerais começam a escassear. O que produzir uma crise de suprimentos. Vivemos em um tempo de incertezas. Não há nada mais angustiante para o ser humano do que a incerteza. As pessoas querem certezas. Se não as encontram, tornam-se presas fáceis de falsos profetas que oferecem soluções simples, porém, falsas. Os problemas que enfrentamos são complexos, e as soluções também serão. Não há receitas mágicas. A cooperação, a solidariedade, a força comum dos cidadãos que pode trazer solução, com governos coerentes, coalizões positivas, que coloquem o interesse do povo sobre qualquer interesse espúrio. No fim de 2020, pouco antes da eleição nos EUA, uma investigação da plataforma Open Democracy revelou que 28 grupos relacionados ao governo Trump investiu até US$ 170 milhões para promover agendas contrárias a direitos em diversos países, ao longo dos últimos anos. Esses grupos apoiam as restrições contra anticoncepcionais, aborto, divórcio, diretos transexuais na Noruega, França, Áustria e Itália, assim como campanhas em favor da pena de morte para homossexuais na África. Em 2019, a ultradireita consolidou-se como um fenômeno que transcendeu fronteiras, como uma tentativa desesperada, por parte de alguns, de negar a realidade de um mundo complexo e global, que igualmente enfrentava problemas complexos e globais. Tornou-se evidente que o modelo neoliberal não se sustenta, pois o planeta é infinito, e o modelo de desenvolvimento atual se baseia em um crescimento permanente e sustentado tão ilusório quanto pernicioso. Os outros pilares neoliberais são a desregulação e a livre competição, que apenas nos levam à desigualdade extrema e à exploração da maioria por uns poucos que absorvem cada vez mais riquezas. Inquieta-me muito isso. Creio que os progressistas não devem minimizar o crescimento da ultradireita, pois, ao fazê-lo, podemos nos deparar como acontecimentos como o de 8 de janeiro, em Brasília. Colocaremos em risco a democracia, se permanecermos indiferentes a esse fenômeno. Não há dúvidas de que interesses econômicos potencializam o avanço da intolerância em todo o mundo. Falta capacidade de reação dos partidos democráticos para freiá-lo. Trump e seu entorno empresarial têm sido muito responsáveis por essas ideologias que o sustentaram, mas também há interesses econômicos que seguem propiciando sua aparição. A direita democrática deveria fazer uma reflexão sobre o motivo pelo qual se deixa levar pela extrema-direita para alcançar o poder. Isso está ocorrendo na Espanha, por exemplo. Sem contar os graves efeitos de perda de liberdade e de retorno a épocas obscuras que congregam a extrema-direita. Até a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil viveu uma longa noite de restrição de direitos fundamentais, repressão e armadilhas de todo tipo para impor a ideologua de ultradireita por parte de Bolsonaro. Preocupa-me a curta diferença de votos entre as duas opções — o passado de Bolsonaro e o futuro progressista de Lula. Isso indica que as forças da ultradireita têm uma base econômica de apoio que lhes permite anunciar-se, mobilizar em redes sociais e enraizar-se na sociedade. Falta muito mais pedagogia para que os cidadãos apreciem a vida em liberdade, em solidariedade e em democracia.

De que modo o senhor vê os incidentes do último domingo na Praça dos Três Poderes?

Em primeiro lugar, gostaria de brindar todo o meu apoio ao governo eleito democraticamente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Algumas pessoas acreditam que estão sobre a maioria e se autoatribuem o direito de impor a própria vontade. Eles se creem superiores e supremacistas. Acreditam no direito de utilizar a violência e atacar as instituições. Por isso, deve-se castigar, com dureza, as pessoas que, no último domingo, invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Milhares de simpatizantes do ex-presidente Jair Bolsonaro irromperam, massivamente, nessas instituições públicas. Não foi algo casual, nem espontâneo. É preciso chegar até o fim nas investigações e sancionar os autores intelectuais, assim como aqueles que financiaram esses atos violentos, de terrorismo e de graves atentados. Foi um verdadeiro atentado à democracia, um golpe de Estado que deve ser severamente sancionado como tal.

No Brasil, a polícia tem atuado com extrema violência. Qual a fórmula para dosar direitos humanos e garantia de segurança?

Educação, educação e educação. Devemos educar em direitos humanos em todos os níveis. O primeiro, e talvez mais urgente, seja reeducar a polícia em direitos humanos. A importância de uma polícia respeitosa dos direitos de todos, das vítimas, dos réus, dos inocentes e dos culpados. Investigar primeiro e deter depois. Tratar o interrogatório como elemento de prova central. Se o réu tem direito de guardar silêncio, deve exercê-lo. Uma boa investigação não deve depender do que diga ou deixa de dizer o réu. A tortura não é admissível sob nenhuma circunstância. Temos que educar os juízes sobre direitos humanos, os funcionários públicos, os políticos e todos aqueles que exerçam um cargo público, mas também os alunos das universidades e das escolas. Se não conhecermos nossos direitos, não poderemos exercê-los. Se uma autoridade não conhecer os direitos humanos, não poderá defendê-los, respeitá-los e protegê-los. A violação de um direito deve, sempre, ser sancionada de modo proporcional e exemplar. Permitir que um policial infrator siga em atividade equivale a legitimar a violência. Democracia... Garantir os direitos humanos não significa ser débil na aplicação da lei em democracia frente aos que não respeitam as regras da mesma. É preciso ser contundente, revisar as atuações de segurança e formar, ou reformar, as forças que a aplicam, respeitando os direitos fundamentais, mas também todas as garantias. Sem perder de vista que a pobreza e a desigualdade é um elemento que pode levar muitas pessoas ao desespero. Lula tem um árduo trabalho pela frente, pois supõe levar ao futuro uma nação imensa, muito maltratada pela ultradireita, que terá de sair do poço da miséria e da raiva da injustiça. Ele terá que ter muita pedagogia e não fechar os olhos ante o que tem acontecido.

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