Holocausto

Levante de Varsóvia: há 80 anos os judeus desafiavam o horror do holocausto

Há 80 anos, judeus do Gueto de Varsóvia colocaram suas vidas em risco e se insurgiram contra a campanha de deportação para os campos de extermínio. Eles criaram um exército clandestino que repeliu as tropas nazistas por quatro semanas

Rodrigo Craveiro
postado em 16/04/2023 03:55 / atualizado em 16/04/2023 16:27
 (crédito: Janek Skarzynski/AFP)
(crédito: Janek Skarzynski/AFP)

A maioria dos judeus confinados no Gueto de Varsóvia havia sido assassinada pelos soldados de Adolf Hitler, quando a revolta teve início, em 19 de abril de 1943. No verão de 1942, cerca de 250 mil entre os 480 mil moradores foram deportados para Treblinka, um campo construído no meio de uma floresta, a nordeste da capital polonesa, com um propósito: o extermínio. Entre os que escaparam da morte e ficaram no Gueto, surgiram atos de coragem, sacrifício e desespero.

Na próxima quarta-feira, o mundo renderá um tributo à bravura de judeus, homens e mulheres, que colocaram em risco suas vidas para salvar o próximo. Como Vladka Meed (leia abaixo), a jovem de 22 anos que contrabandeou armas e explosivos para dentro do Gueto e ajudou a esconder outros judeus.

Autor de The jewish heroes of Warsaw — The afterlife of the revolt ("Os heróis judeus de Varsóvia — A vida após a revolta") e professor de Estudos Judaicos da Universidade de Connecticut, Avinoam J. Patt explicou ao Correio que os integrantes da clandestinidade judaica formaram uma Liga Combatente Judaica dentro do Gueto e decidiram que, quando os nazistas chegassem para a liquidação final, prefeririam morrer a embarcar nos trens para o campo de extermínio de Treblinka.

"A maioria dos combatentes eram de movimentos juvenis, incluindo sionistas, integrantes da União Geral Operária Judaica (Bund), e sionistas revisionistas que formaram a milícia União Militar Judaica. Além do comandante Mordechai Anielewicz, a Liga Combatente Judaica tinha figuras de peso, como Marek Edelman (do Bund), Zivia Lubetkin (sionista), Michal Klepfisz e Vladka Meed", contou Patt.

Após o primeiro choque com as forças nazistas, em janeiro de 1943, os integrantes da Liga Combatente Judaica perceberam que combates diretos contra os soldados de Hitler seriam inúteis. "Eles decidiram se preparar para uma guerra de guerrilha e usar táticas de surpresa. Lançaram coquetéis Molotov dos prédios, dispararam a partir de andares mais altos e prepararam explosivos, detonados aos pés dos soldados alemães", comentou Patt. "Milhares de judeus construíram bunkers para se esconderem das deportações. Isso tornou a tarefa de reunir os judeus remanescentes no Gueto especialmente difícil para os alemães", acrescentou.

Nos meses que antecederam a revolta, a Liga Combatente Judaica contrabandeou armas para o Gueto, compradas no mercado clandestino. Enquanto as deportações para Treblinka prosseguiam, a Liga tentou convencer os sobreviventes de que a melhor resposta seria lutar de volta.

Curador do Memorial do Holocausto em São Paulo e professor do StandWithUS Brasil, Marcio Pitliuk lembrou que o ataque final dos nazistas ao Gueto de Varsóvia ocorreu no Pessach, a Páscoa judaica. "Os combatentes pediram à resistência polonesa — Armia Krajowa — munições e armas, o que foi recusado. Os combatentes compraram poucas armas e munições no mercado clandestino. Muitos guardavam a última bala para si, pois sabiam o que aconteceria com eles, caso caíssem nas mãos dos nazistas", disse à reportagem.

Propaganda

De acordo com Zachary Mazur, especialista do Museu da História dos Judeus Polacos (Polin), em Varsóvia, além de construir esconderijos, a resistência armazenou suprimentos, especialmente comida e combustível. "A Liga Combatente Judaica e outros grupos realizaram uma ofensiva de propaganda, tentando preparar os moradores do Gueto a resistirem. Muitas vezes, os nazistas evitavam uma incursão no Gueto — consideravam o local sujo e repleto de doenças", disse ao Correio. A resistência se beneficiou de informações oriundas de uma imprensa clandestina, de grafites, cartazes e do boca a boca.

Avinoam J. Patt lembrou que os combatentes do Gueto repeliram os nazistas por quase quatro semanas. "O Levante do Gueto de Varsóvia foi a mais bem-sucedida revolta judaica em uma grande área urbana durante a guerra. A superioridade militar do Exército da Alemanha era tremenda."

Patt acredita que os judeus do Gueto estavam cientes de que não iriam derrotar os alemães, nem evitariam a liquidação final. "O que eles esperavam era provar para os nazistas que poderiam revidar, que não morreriam sem uma luta. Para muitos dos combatentes, simplesmente ver 'sangue alemão fluindo pelas ruas' seria um sucesso. Eles reagiram e se vingaram dos alemães que assassinaram suas famílias. Nesse sentido, o levante foi exitoso."

Para evitar o confronto direto com os judeus, o general nazista Jürgen Stroop decidiu queimar todo o Gueto. Alguns membros da resistência se embrenharam pelos esgotos, sob as ruas de Varsóvia, e viveram para contar sua história. Milhares de documentos foram encontrados anos depois, um testemunho do horror entre os muros do Gueto.

"Essa é a história sobre pessoas famintas desesperadas, enfrentando a morte iminente e usando o último grama de energia para lutar contra opressores", afirmou Mazur. O polonês vê, no Levante do Gueto de Varsóvia, lições sobre dignidade e humanidade. "Os nazistas tentaram tornar os judeus subumanos, mas, naqueles momentos de combate, os insurgentes reafirmaram o seu direito de viverem neste mundo."

 


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  • Judeus enviados para os campos da morte, em 1943
    Judeus enviados para os campos da morte, em 1943 Foto: Wikipedia/Reprodução
  • Fogo consome prédio do Gueto, durante levante
    Fogo consome prédio do Gueto, durante levante Foto: Wikipedia/Reprodução
  • Criança de sete anos ergue as mãos, em rendição
    Criança de sete anos ergue as mãos, em rendição Foto: Wikipedia/Reprodução
  • Conselho de administração do Gueto destruído
    Conselho de administração do Gueto destruído Foto: Wikipedia/Reprodução

PONTOS DE VISTA

 (crédito: Adam Scotti )
crédito: Adam Scotti

Por Avinoam J. Patt

Símbolo de

resistência

 

"O levante do Gueto de Varsóvia, como a primeira revolta em massa em uma grande cidade na Europa ocupada pelo Exército nazista, tornou-se símbolo da resistência judia à opressão, inspirando rebeliões similares em Bialystok e Misnk, assim como revoltas nos campos de Treblinka e Sobibor, em 1943. O levante do Gueto de Varsóvia se tornaria o ponto focal da memória do Holocausto em Israel e nos Estados Unidos. O 19 de abril é lembrado desde 1944. No quinto aniversário, o famoso Monumento Rapaport foi construído, em Varsóvia. Em 19 de abril de 1953, o Knesset (Parlamento) aprovou a Lei Yad Vashem, para lembrar os mártires e heróis do levante. Para muitos judeus depois da Segunda Guerra Mundial, a revolta em Varsóvia tornou-se o prisma, por meio do qual eles escolheram lembrar o Holocausto. Um símbolo da determinação judaica de morrer uma morte heróica, para se vingar dos nazistas pelo assassinato do povo judeu."

 

Chefe da Cátedra Doris e Simon Konover de Estudos Judaicos da Universidade de Connecticut e autor de The jewish heroes of Warsaw — The afterlife of the revolt ("Os heróis judeus de Varsóvia — A vida após a revolta")

 

 

Por Zachary Mazur 

Um sucesso

impossível

 

"O levante nunca poderia ter sido bem-sucedido, pois os judeus no Gueto estavam completamente cercados pelo Exército alemão, e a sociedade polonesa era indiferente ao seu destino. Os judeus que escaparam do Gueto não conseguiram encontrar ajuda do lado de fora. A maioria das pessoas se preocupava com suas próprias famílias, em tentar encontrar comida e em lutar pela sobrevivência. Não estavam interessados em ajudar uns aos outros. A ocupação nazista teve o efeito de severa atomização da sociedade. O sucesso poderia ser definido como um atraso na deportação dos judeus do Gueto de Varsóvia para os campos de extermínio. Também poderia ser definido como o direito de alguns judeus a morrerem com dignidade, a escolherem seu próprio destino e a perecerem na batalha, em vez de em um campo da morte. Muito poucas pessoas foram capazes de sobreviver ao levante."

 

Historiador sênior no Museu POLIN — Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia

 

A mensageira da vida

 (crédito: Arquivo pessoal )
crédito: Arquivo pessoal

Steven Meed

"Minha mãe, Valdka Meed, nasceu com o nome de Feigele Peltel, em Varsóvia, em 1921. Ela atuou como mensageira da Resistência Judaica, no Gueto de Varsóvia. Nos meses que antecederam o levante, enquanto os nazistas deportavam centenas de milhares de judeus para suas mortes, mamãe foi selecionada pela Resistência para escapar de dentro do Gueto. Com um pequeno grupo de outros jovens mensageiros (a maior parte de mulheres judias com sotaque polonês irretocável), sua tarefa foi adquirir armas, explosivos e munições de fontes na Varsóvia Ariana e contrabandeá-los para dentro do Gueto. Também enviou mensagens, mapas e apelos de combatentes do Gueto para fora dos muros, e ajudou outros judeus a escaparem e a se esconderem em Varsóvia. No exato momento do levante, ela foi designada para ficar do lado de fora do Gueto e prestar ajuda aos poucos combatentes que sobreviveram e que conseguiram escapar. 

Vladka tinha 18 anos quando o Gueto foi erguido, e 22 à época do levante. Inicialmente, trabalhou como uma costureira escrava em uma das fábricas montadas pela Alemanha, resistindo à fome. Mamãe sobreviveu por sua atratividade, sua coragem de aço, sua desenvoltura e sua inteligência. Presa várias vezes pela polícia alemã e pela Gestapo, ela conseguiu se livrar ou enviar mensagens a colegas para providenciar sua libertação. Depois da Segunda Guerra Mundial, tornou-se educadora e testemunha dos heróis do Gueto de Varsóvia pelo resto da vida, viajando para 25 países. Minha mãe continuou a falar ativamente até os 86 anos. Faleceu aos 91, em 2012. 

A principal lição de Vladka foi celebrar que a resistência veio de muitas formas. Aquela que manteve a própria humanidade, mesmo sob as piores condições. Resistência que ocorria quando alguém se juntava aos próprios familiares, na deportação para os campos de extermínio, apenas para que não fossem sozinhos. Somos dois filhos de Vladka. Nosso lar sempre esteve cheio de outros sobreviventes. Em 1971, me pediram para traduzir as extensas memórias de minha mãe do iídiche para o inglês. Com o tempo, houve outras traduções para o espanhol, hebraico, alemão, japonês e polonês."

Médico, é filho de Vladka Meed (fotos), sobrevivente do Gueto de Varsóvia que ajudou no levante. Depoimento ao Correio, por e-mail

  •  Vladka Meed, sobrevivente do Gueto de Varsóvia
    Vladka Meed, sobrevivente do Gueto de Varsóvia Foto: Wikipedia
  • Steven Meed, médico e filho de Vladka Meed, sobrevivente do Gueto de Varsóvia
    Steven Meed, médico e filho de Vladka Meed, sobrevivente do Gueto de Varsóvia Foto: Arquivo pessoal
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