À zero hora de ontem (19h de sábado em Brasília), a Alemanha fez história, ao desligar as suas três últimas usinas nucleares: Isar 2 (sudeste), Neckarwestheim (sudoeste) e Emsland (noroeste). A companhia de energia RWE classificou a desconexão da rede elétrica como "o fim de uma era". Pouco antes, sob o Portão de Brandemburgo, local icônico de Berlim, a organização não governamental ambiental Greenpeace fez uma manifestação marcada pelo adeus à energia atômica, representada por um dinossauro derrubado pelo ativismo antinuclear.
Miranda Schreurs, professora de Política Climática e Ambiental da Universidade Técnica de Munique e codiretora do Comitê de Supervisão dos Cidadãos Abordando a Gestão de Resíduos Nucleares, explicou ao Correio que, com a desativação das usinas nucleares, a Alemanha põe fim a seis décadas de produção de energia atômica e encerra décadas de conflito relacionado a uma fonte energética controversa. "Isso também significa que a energia pode ser transformada, no sentido de fazermos mais progresso na transição para a energia renovável. A Alemanha também produz mais eletricidade do que consome, e a energia nuclear responde por apenas 3% de sua matriz energética", comentou.
Na década de 1990, a Alemanha retirava apenas 3% de sua eletricidade das fontes renováveis. Hoje, esse percentual se aproxima dos 50%; em 2030, deve atingir 80% e, cinco anos depois, a totalidade. "Haverá redução da demanda e melhorias na eficiência energética e no armazenamento, além de produzir hidrogênio verde", avaliou Schreurs. Os próximos passos, antecipa a especialista alemã, envolverão a rápida construção de energias renováveis, o isolamento de casas e edifícios, o desenvolvimento de capacidades de armazenamento, a pesquisa e o desenvolvimento de hidrogênio verde e a adoção de tecnologias inteligentes.
Fundador do Centro de Política Ambiental da Universidade Livre de Berlim e ex-membro de um órgão consultivo do governo da Alemanha que recomendou a eliminação gradual da energia nuclear, Martin Jaenicke, 85 anos, recebeu com satisfação a decisão da Alemanha de desistir das usinas atômicas. "A questão nuclear em meu país está superada. O principal foco da política pode se voltar agora para as energias renováveis, que são mais baratas do que a nuclear. Outros países, como a Dinamarca, têm mostrado que essas outras fontes energéticas são uma boa opção", afirmou ao Correio. Ele aposta que as energias hidrelétrica, solar e geotérmica, além dos biocombustíveis, serão as principais alternativas. "As energias solar e eólica serão negociadas à base de hidrogênio verde e de importações", prevê.
Por sua vez, Paul-Marie Manière — especialista nuclear da organização não governamental Greenpeace na Alemanha — admitiu à reportagem que a energia atômica apresenta declínio mundial desde 2002, por ser considerada muito perigosa, especialmente lenta e extremamente cara para a instalação. "Enquanto isso, as energias renováveis se tornaram baratas e rápidas de instalar. Além da China, quase nenhum país está construindo usinas nucleares. Ao eliminar a energia nuclear e o carvão, ainda que muito lentamente, e apostar em fontes renováveis, a Alemanha dá um grande exemplo."
Schreurs vê uma série de razões histórias para a reticência da Alemanha en relação à energia nuclear. "A primeira delas diz respeito aos acidentes. A preocupação começou com o desastre em Three Mile Island, nos EUA. A Alemanha foi diretamente impactada pelo escape radioativo do acidente em Chernobyl, por causa da direção em que os ventos sopravam", lembrou. "Um segundo motivo é porque a Alemanha foi uma nação dividida durante a Guerra Fria. Muitos cidadãos estavam preocupados que uma nova e catastrófica guerra, baseada em armas nucleares, pudesse atingir a Europa. Havia uma ligação entre ter o poder nuclear convencional e o conhecimento para desenvolver um arsenal atômico", destacou a professora de Munique.
Um terceiro motivo para o abandono da matriz nuclear está na ascensão do Partido Verde, cujas raízes estão fincadas no movimento antinuclear. "O partido ganhou representatividade no Bundestag (Parlamento) em 1983, apenas três anos antes do acidente nuclear de Chernobyl. Na primeira vez que ele foi convidado para uma coalizão governista, em 1998, ao lado do Partido Social Democrata, obteve, em 2000, a primeira decisão para eliminação da energia nuclear, de forma gradual, na década de 2020", observou Schreurs.
A aliança formada pela União Democrata Cristã e pelo Partido Democrata Livre tentou reverter essa tendência, mas o incidente na usina japonesa de Fukushima, durante o tsunami de março de 2011, levou a um consenso entre as partes para o fim gradual da matriz nuclear. Ainda segundo Schreurs, outra razão foi a invasão russa à Ucrânia. "A guerra despertou preocupações, após ataques com mísseis à central atômica ucraniana de Zaporizhzhia. O governo alemão perderia credibilidade, caso desistisse do fechamento."
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Quadro - Tragédias e risco em potencial
Chernobyl
Three Mile Island
Fukushima
Zaporizhzhia
Eu acho...
"Esta é uma tendência mundial, mas a Alemanha é a primeira economia do G7 a abandonar a energia nuclear. Trata-se de um passo muito importante! No que diz respeito aos vizinhos europeus, acreditamos que a Bélgica provavelmente desativará suas usinas até 2035. Apenas a França está realmente presa em sua matriz elétrica carregada de energia nuclear, com muito poucas fontes renováveis."
Paul-Marie Manière, especialista nuclear da organização não governamental Greenpeace na Alemanha