América do Sul

Chile: Ex-presidente e antecessores firmam pacto pela democracia

Às vésperas do 50º aniversário do golpe contra Salvador Allende, Boric e quatro ex-líderes assinam carta com promessa de combater ameaças autoritárias

Chilenos visitam o Memorial às Pessoas Detidas e Desaparecidas, no Cemitério Geral de Santiago: ruptura institucional deu lugar a graves violações dos direitos humanos -  (crédito: Martin Bernetti/AFP)
Chilenos visitam o Memorial às Pessoas Detidas e Desaparecidas, no Cemitério Geral de Santiago: ruptura institucional deu lugar a graves violações dos direitos humanos - (crédito: Martin Bernetti/AFP)
Rodrigo Craveiro
postado em 08/09/2023 06:00

Às vésperas do 50º aniversário do golpe militar de 11 de setembro de 1973, o presidente do Chile, Gabriel Boric, e quatro antecessores — Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018-2022), Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018), Ricardo Lagos (2000-2006) e Eduardo Frei (1994-2000) — assinaram um acordo para "defender a democracia das ameaças autoritárias". Sob o título "Compromisso pela democracia sempre", o texto lembra que o Chile "gozou, durante mais de 140 anos, quase sem interrupção, de uma democracia em contínua evolução, de uma ordem constitucional estável, e também de respeitáveis e sólidas instituições republicanas, que eram objeto de admiração e prestígio do mundo inteiro". 

O documento pontua que os cinco signatários deixaram as "legítimas diferenças de lado" e , ao cumprirem-se os 50 anos da ruptura violenta da democracia, "que custou a vida, a dignidade e a liberdade de tantas pessoas, chilenas e de outros países". A tomada de poder culminou com a deposição e a morte do presidente Salvador Allende e a instalação da ditadura do general Augusto Pinochet, que comandou o país com mão-de-ferro até 1990. No acordo firmado pelo atual chefe de Estado e pelos ex-presidentes, eles também se comprometem a "preservar e proteger os princípios civilizatórios das ameaças autoritárias, da intolerância e do menosprezo pela opinião do outro". 

Em pronunciamento a jornalistas, Boric fez um chamado a todos os 18,5 milhões de chilenos. "Que a comemoração dos 50 anos do 11 de setembro seja um momento de reflexão, pacífico, onde recordemos a tragédia, (...) a ética da luta contra a ditadura para podermos recuperar a nossa democracia. (...) Nós condenamos a violência. Na democracia, a violência não cabe  como ferramenta política", declarou. 

Marcelo Mella, professor de ciência política da Universidad de Santiago de Chile, disse ao Correio que o documento "Compromisso pela democracia sempre" é um "importante sinal, tanto do ponto de vista simbólico quanto moral". "Mas o pacto tem efeitos políticos limitados. Salvo o caso de Bachelet, os espaços políticos que cada um dos outros três ex-presidentes representa perderam a capacidade de mobilização eleitoral. Portanto, não indica que provocará uma mudança de comportamento dentro do processo de polarização no Chile", explicou. 

Mella aponta que o grande problema que afeta a democracia chilena — e que causa tendência à polarização e crescimento de setores ultraconservadores, representados pelo Partido Republicano — está ligado à falta de efetividade política da democracia chilena durante uma década. "A democracia perdeu  sitonia com uma parte importante da sociedade, como a classe média e setores vulneráveis. Não será uma declaração, com boas razões políticas e morais para ser compartilhada, que vai tirar o Chile da crise. Mais do que a afirmação necessária de compromisso com a democracia, é preciso entender que as crises políticas também se produzem porque a democracia deixa de responder a demandas sociais", acrescentou, ao citar a incapacidade de Boric de responder aos problemas ligados à segurança pública. Segundo ele, isso faz com que os ultraconservadores tenham mais apoio do que antes de 1990. 

Autoritarismo

Pesquisas recentes mostram que a valorização da opção autoritária, um legado de Pinochet, ecoa principalmente entre a classe média baixa e os setores mais vulneráveis da sociedade. "A fuga de adesão à democracia se relaciona com a incapacidade do sistema democrático e institucional de responder com políticas, de maneira efetiva e oportuna", conclui Mella. 

Para Ricardo Mena, oficial de Programas para Chile e Cone Sul do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA internacional), o fato de todos os ex-presidentes vivos que governaram na pós-ditadura terem assinado o acordo pela democracia revela a importância e o compromisso pela pela promoção de uma convivência democrática saudável. "Também demonstra o desejo de o Chile não repetir os erros que levaram ao golpe de Estado e, sobretudo, em mirar o futuro, com a esperança de renovar o contrato social, em um marco de fortalecimento da democracia", afirmou ao Correio. "No marco do 50º aniversário do golpe, isso é ainda mais importante. O Chile encontra-se em um complexo momento de polarização, principalmente entre as elites, e com uma cidadania que perdeu a confiança na democracia."

Conselheira do Instituto Nacional dos Direitos Humanos e ex-candidata ao Conselho Constitucional, Constanza Valdés também considerou importante que ex-presidentes de distintos governos assinam uma carta em que condenam o golpe de Estado e as violações aos direitos humanos, além de buscarem "estabelecer princípios mínimos que devem ser respeitados em qualquer governo". "O que considero lamentável é que ainda se questione algo que parece óbvio, que tem a ver com o fato de o golpe não ter qualquer justificativa possível", disse à reportagem. Ela prevê que o documento terá repercussões políticas, especialmente dentro de setores que não concordaram com nenhum acordo sobre os 50 anos pós-ditadura. "Espero que esse compromisso implique também uma dedicação especial ao avanço das dívidas pendentes que existem na Justiça Transicional no Chile com relação ao último meio século."

 

Os compromissos firmados

Assinatura do presidente Gabriel Boric e de quatro antecessores em pacto pela democracia
A carta assinada por Boric e os quatro ex-presidentes (foto: Gabriel Boric/X)

1- Cuidar de defender a democracia, respeitar a Constituição, as leis e o Estado de Direito.

2- Enfrentar os desafios da democracia com mais democracia, nunca com menos, condenar a violência e fomentar o diálogo e a solução pacífica das diferenças, com o bem-estar do cidadão no horizonte.

3- Fazer da defesa e da promoção dos direitos humanos um valor compartilhado por toda a comunidade política e social, sem colocar nenhuma ideologia antes de seu respeito incondicional.

4- Fortalecer os espaços de colaboração entre Estados, por meio de um multilateralismo maduro e respeituoso das diferenças, o qual estabeleça e persiga os objetivos comuns necessários ao desenvolvimento sustentável da sociedade.

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