DIPLOMACIA

G20: por que Lula 'não é mais o cara', mas tem seus trunfos

Presidente chega à Índia nesta sexta-feira para cúpula das maiores economias do mundo; Brasil assume a presidência do bloco, com mandato a partir de dezembro.

Lula chega à Índia nesta sexta para cúpula das maiores economias do mundo -  (crédito: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)
Lula chega à Índia nesta sexta para cúpula das maiores economias do mundo - (crédito: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)
BBC
Mariana Schreiber - Enviada da BBC News Brasil a Nova Déli
postado em 08/09/2023 05:17 / atualizado em 08/09/2023 06:56

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega nesta sexta-feira (8/9) a Nova Déli, na Índia, para assumir a presidência do G20 (grupo que reúne as maiores economias do mundo) em uma cúpula tensa, marcada por atritos envolvendo o conflito da Ucrânia e pela ausência de dois líderes importantes – Vladimir Putin (presidente russo) e Xi Jinping (presidente chinês).

O contexto é muito diferente de anos atrás, quando Lula atuava como importante liderança mundial nos esforços de superação da crise financeira de 2008 e chegou a ser chamado de "o cara" e o "político mais popular da terra" pelo então presidente americano, Barack Obama, durante o G20 de Londres, em 2009.

Para analistas de política externa ouvidos pela reportagem, o aumento da polarização mundial entre Estados Unidos e China – que desafia a tradição brasileira de multilateralismo – e o enfraquecimento da imagem do Brasil nos últimos anos, após crises econômicas e políticas, deixam o cenário pouco favorável para Lula voltar ao bloco com o mesmo peso de antes.

"Ele não é mais o cara. Acho que ninguém sustentaria isso, tanto porque, obviamente, o Brasil não está mais nadando de braçada em termos econômicos, quanto por tudo que o país passou: um impeachment, a prisão do próprio Lula [na operação Lava Jato] e a eleição de uma figura tão controversa e complicada em todos os âmbitos como é [o ex-presidente Jair] Bolsonaro", analisa Ana Saggioro Garcia, professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Por outro lado, nota Garcia, o retorno do petista ao G20 ocorre em um momento especial para o Brasil, já que o país é o próximo a assumir a presidência do grupo, com mandato entre dezembro deste ano e novembro de 2024, quando uma cúpula de líderes será realizada no Rio de Janeiro.

No encerramento da cúpula de Déli, no domingo (10/9), haverá uma cerimônia simbólica de transmissão da liderança do bloco, do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para Lula.

A presidência do G20 é uma oportunidade de pautar a agenda mundial, segundo o professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Leonardo Ramos.

A previsão é de que Lula use a liderança brasileira para convencer os países do G20 a adotarem metas concretas de redução da pobreza. Outros temas que ganharão destaque na presidência do Brasil serão o "desenvolvimento sustentável, em suas dimensões econômica, social e ambiental", e a reforma de instituições multilaterais como o Conselho de Segurança da ONU e o Banco Mundial, para dar mais peso a países em desenvolvimento.

Após presidir o G20, o Brasil sediará também em 2025 a conferência anual da ONU sobre mudanças climáticas (COP 30) e a cúpula dos Brics – grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que acaba de anunciar a inclusão de mais seis membros (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia).

Para Ramos, esse momento especial para o Brasil, como sede de grandes encontros de líderes mundiais, cria um palco para Lula ser "o cara" novamente. Mas isso vai depender dos resultados alcançados, ressalta.

"É um momento interessante [para o Brasil], nesse sentido ele tem um potencial. Vamos ver o que ele consegue negociar, por exemplo na agenda climática, ou em termos de apoio à reforma do Conselho de Segurança da ONU e a entrada permanente do Brasil", afirma, citando uma antiga reivindicação brasileira.

Na avaliação de Ramos, Lula tem importantes trunfos para aproveitar essas oportunidades, como seu forte carisma pessoal, a experiência acumulada em seus dois primeiros mandatos presidenciais e a importância do Brasil na área ambiental e climática.

"Gostemos ou não [de Lula], não vejo outra figura na política brasileira que poderia capitalizar melhor [a liderança desses grandes eventos]", diz.

A cúpula de líderes do Rio de Janeiro será precedida de dezenas de encontros setoriais, para discutir políticas em diferentes áreas, como saúde, educação e meio ambiente.

A intenção do governo brasileiro é realizar eventos nas cinco regiões do país, mas em dimensão bem menor que a indiana, que chegou a promover reuniões do G20 em mais de cinquenta cidades, numa tentativa de Modi de usar a presidência do grupo para projetar seu governo internamente.

O impasse sobre guerra na Ucrânia

Os planos do Brasil para a presidência do G20, no entanto, podem ser atrapalhados pela continuidade da guerra na Ucrânia, país que foi invadido em fevereiro de 2022 pela Rússia.

A própria reunião de Déli pode acabar sem um comunicado final devido às divergências sobre o conflito que opõe de uma lado as potências ocidentais e de outro Rússia, com apoio da China.

Já o Brasil busca adotar uma posição de neutralidade e incentivar um acordo de paz, mas com baixa capacidade de influência no conflito, apontam os analistas entrevistados.

O presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping decidiram, inclusive, não participar da cúpula, e serão representados por seus chanceleres.

Enquanto a presença de Putin já era dúvida, devido a suas preocupações com a guerra e sua segurança pessoal, a anunciada ausência de Xi Jinping surpreendeu e não foi explicada por Pequim, mas pode ter sido influenciada pela crescente tensão com a Índia devido a disputas territoriais na fronteira dos dois países.

Para Ramos, Xi Jinping parece ter querido esnobar a presidência indiana, boicotando a tentativa de Modi de usar a cúpula para se projetar para o mundo e para os indianos como líder do Sul Global. Às vésperas da chegada dos líderes à Nova Déli, a cidade está repleta de cartazes do G20 com imagens do primeiro-ministro indiano, numa clara personalização do evento.

Por outro lado, outras lideranças de destaque estão confirmadas, como o presidente americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak.

Tensão G20 x Brics

A anunciada ausência de Xi Jinping contrasta com sua forte influência na última cúpula do Brics, realizada em agosto na África do Sul, quando a expansão do bloco atendeu aos interesses chineses, numa indicação de que Pequim estaria priorizando fóruns em que tem mais condições de controle.

Brasil e Índia por muito tempo resistiram à entrada de novos membros, uma reivindicação antiga da China e que, mais recentemente, obteve apoio da Rússia, numa tentativa das duas nações de construir para si espaços de influência global em contraponto a articulações das potências ocidentais, como o G7.

O receio da diplomacia brasileira era que um Brics expandido diluiria a importância de membros originais como o Brasil, mas manteria a China forte, devido ao seu peso econômico hoje no mundo.

Lula buscou afastar a percepção de que o novo Brics seria uma tentativa de antagonizar com o Ocidente.

"A gente não quer ser contraponto ao G7. A gente não quer ser contraponto ao G20. A gente não quer ser contraponto aos Estados Unidos. A gente quer se organizar. A gente quer criar uma coisa que nunca teve, que nunca existiu", disse durante a cúpula do grupo.

Já o cientista político Hussein Kalout, pesquisador em Harvard e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), avalia que a forma como se deu a ampliação dos Brics tem contribuído para aumentar a desconfiança de potências ocidentais em relação ao Brasil, junto a outros episódios, como as falas do presidente sobre a guerra na Ucrânia no primeiro semestre, quando Lula chegou a dizer que os dois lados do conflito tinham responsabilidade semelhante, apesar de apenas a Rússia ter invadido o território ucraniano.

Para Kalout, o objetivo de manter neutralidade no conflito é correto e segue a tradição diplomática brasileira, mas a forma como o Brasil tem levado a questão na prática tem sido interpretada negativamente pelo lado ocidental e pode afetar a capacidade de liderança de Lula à frente do G20.

"Na visão de parceiros estratégicos do Brasil no mundo ocidental, o Brasil tem sido uma voz ativa na construção de uma coalizão, digamos, antiocidental. Certa ou errada, não importa, mas é a visão que se tem. Cabe ao Brasil demonstrar que isso não é verdade", ressaltou Kalout.

Leonardo Ramos, por sua vez, considera que o Brasil teve uma importante conquista na negociação para ampliação do Brics: em troca de aceitar a expansão pretendida por China e Rússia, o país conseguiu inserir na declaração final do encontro, pela primeira vez, um apoio explícito à entrada de Brasil, Índia e África do Sul no Conselho de Segurança da ONU.

Esse órgão, responsável por zelar pela paz mundial e mediar conflitos, conta com apenas cinco membros permanente, todos com poder de veto: Estados Unidos, a França, o Reino Unido, a Rússia (Estado sucessor da União Soviética) e a República Popular da China

"Lula vai para o G20 para tentar negociar com o Biden [a entrada no Conselho de Segurança] com a carta da China junto: 'China e Rússia já liberaram, então agora falta vocês, Estados Unidos, Reino Unido', ele vai argumentar", acredita Ramos.

Por enquanto, porém, nenhuma reforma concreta do Conselho está no horizonte.

Entre os anúncios concretos aguardados para a Cúpula de Déli está a confirmação da ampliação do grupo para entrada da União Africana, algo que atende às reivindicações de países em desenvolvimento por mais espaço nos fóruns internacionais.

Outra novidade esperada é a formalização da Aliança Global pelos Biocombustíveis, liderada por Índia, Brasil e Estados Unidos, e que deve contar com a adesão inicial de, ao menos, outros 16 países (não necessariamente membros do G20).

A iniciativa busca expandir a produção e o consumo mundiais de biocombustíveis como o etanol, em especial em países em desenvolvimento, dentro de uma agenda de transição energética para opções menos poluentes.

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