Chile

Em 4 pontos, o que explica grande impacto internacional de golpe no Chile há 50 anos

A memória de Salvador Allende, as imagens brutais do assalto militar liderado por Pinochet e o legado dos exilados chilenos no exterior são algumas das razões pelas quais o golpe de 1973 é tão emblemático.

Uma imagem que impactou o mundo no dia 11 de setembro de 1973: Salvador Allende com fuzil na mão e capacete, em pleno ataque ao palácio La Moneda -  (crédito: Getty Images)
Uma imagem que impactou o mundo no dia 11 de setembro de 1973: Salvador Allende com fuzil na mão e capacete, em pleno ataque ao palácio La Moneda - (crédito: Getty Images)
BBC
Fernanda Paúl * - BBC News Mundo
postado em 11/09/2023 07:37 / atualizado em 11/09/2023 08:36

"Ocorreu no Chile, para desgraça dos chilenos, mas há de passar para a história como algo que aconteceu sem remédio a todos os homens deste tempo e que ficou em nossas vidas para sempre."

Foi assim que Gabriel García Márquez descreveu a derrubada do presidente Salvador Allende, que há 50 anos não só marca e divide o Chile, mas também teve grande impacto internacional, como aponta colombiano ganhador do Prêmio Nobel.

Ocorrido em plena Guerra Fria, o golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet em setembro de 1973 não foi um fenômeno isolado.

A Bolívia era governada pelo general Hugo Banzer. O Brasil vivia há nove anos sob um regime militar que duraria 20 anos. No Uruguai, governava Juan María Bordaberry, que mais tarde seria preso por crimes contra a humanidade. Na Argentina, as Forças Armadas tomariam o poder em 1976.

Por que, então, o evento no Chile ficou tão emblemático?

Na data que marca 50 anos do golpe de 11 de setembro de 1973, a BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) explica por que o episódio teve tanto impacto internacional.

1. A figura de Allende

Salvador Allende não foi um líder qualquer.

O chileno foi o primeiro socialista a chegar ao poder pelo voto popular nas Américas, o que imediatamente o tornou uma figura global. Apesar das inegáveis ??divisões que causou, e continua a causar, em seu próprio país, fora dele sua figura e seu projeto despertaram grande interesse.

“Salvador Allende atraiu muita simpatia na Europa e no mundo. Ele não foi um revolucionário como Fidel Castro ou Che Guevara. Tampouco um populista. Ele era um político tradicional, que negociava, conversava”, diz David Lehmann, pesquisador da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e especialista em estudos latino-americanos, em entrevista à BBC Mundo.

“Ao contrário do que aconteceu com outras forças latino-americanas como o peronismo, a aliança da Unidade Popular Chilena tinha ressonância e ligações com outros países”, continua.

“Por isso, sua morte abrupta causou choque e grande decepção. O ataque a uma proposta pacífica como a dele, apesar das evidentes dificuldades que teve, foi muito chocante para muitos”, diz o especialista.

Camila Vergara, doutora em teoria política e acadêmica pela Universidade de Essex, no Reino Unido, tem opinião semelhante.

“Allende era uma pessoa respeitada, porque respeitava as regras do jogo. Lembremos que Che Guevara lhe deu um exemplar de seu livro e, na dedicatória, escreveu: 'Para alguém que por outros caminhos trata de obter o mesmo'", disse à BBC Mundo.

Talvez um dos momentos que melhor reflete essa notoriedade seja o discurso que proferiu diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 1972.

“Nesse discurso, Allende denunciou o que estava acontecendo no Chile e a intromissão internacional na soberania do país; falou de como suas mãos estavam atadas na hora de fazer políticas públicas (...) É um discurso humano, erudito e verdadeiro que continua ressoando até hoje”, disse.

Ao terminar, Allende foi aplaudido de pé, o que só se repetiu em 2013, quando Nelson Mandela ocupou o mesmo palanque.

Segundo Vergara, o golpe contra Allende foi entendido como “o fim violento do movimento operário em todo o mundo”.

"Era o fim de uma promessa de um verdadeiro governo popular, por isso foi tão sentido na Europa”, afirma.

Os analistas concordam que, além disso, o Chile era visto como um país com longa tradição democrática.

E a chegada ao poder, em 1970, de um líder de esquerda, que representou um desafio para os Estados Unidos em tempos vertiginosos, foi mais uma prova disso.

2. As imagens

Outra razão que explica o fato de o 11 de setembro de 1973 ainda ser considerado um marco são as inúmeras imagens que correram o mundo graças à ampla cobertura que o episódio teve na imprensa internacional.

E elas se tornaram icônicas.

“Podemos descrevê-lo como o primeiro golpe latino-americano que, desde as suas origens, passando pela sua execução até as suas consequências, foi coberto pela imprensa ocidental”, disse Kristian Gustafson, especialista em inteligência e segurança da Universidade Brunel, em Londres, em uma entrevista publicada pela BBC em 2013.

“São imagens com um impacto enorme”, diz Michael Reid, escritor e jornalista britânico especializado em América Latina.

“Especialmente o ataque ao La Moneda pela própria Força Aérea Chilena. Eles estavam bombardeando seu próprio palácio presidencial”, acrescenta.

Para Camila Vergara, o ocorrido foi ainda mais chocante na Europa, já que algumas das ações realizadas pelos militares estavam relacionadas “à memória visual do movimento fascista alemão”.

“Eu me refiro à queima de livros ou de centros de detenção. E isso foi muito forte”, diz a historiadora.

A figura de Pinochet como líder do golpe também teve grande impacto internacional.

Ao mesmo tempo em que seus seguidores consideravam que ele tinha salvado o Chile de um governo que arruinava o país, Pinochet tornou-se um dos ícones da violação dos direitos humanos no mundo.

Pinochet esteve no poder por muitos anos (17, no total), em contraste com os generais que se sucederam nas ditaduras da Argentina e do Brasil, por exemplo.

Para Alan Angell, acadêmico da Universidade de Oxford e especialista em política latino-americana, as fotografias distribuídas de Pinochet com seus óculos escuros representavam “quase uma paródia da imagem dos ditadores”.

"Os militares chilenos foram mais eficazes em sua brutalidade. Eles atacaram militantes suspeitos com mais precisão. Eles tinham muito mais informações. E menos oposição", disse Angell à BBC Mundo em um artigo publicado em 2013.

De acordo com diversas Comissões da Verdade, o número total de vítimas oficialmente classificadas no Chile é de 40.175 pessoas, incluindo execuções políticas, presos desaparecidos e vítimas de prisão política e tortura.

3. Marco nos direitos humanos

O pesquisador David Lehmann aponta que outro ponto relevante é que “a partir do que aconteceu no Chile, os direitos humanos foram profissionalizados não só na América Latina, mas também no mundo”.

“Houve muita solidariedade. Ao contrário da Argentina ou do Brasil, que também tiveram regimes militares, neste caso floresceram organizações de apoio às vítimas de perseguição. Muita militância internacional surgiu em torno do Chile porque era um país que repercutia e atraía (atenção)”, explica Lehmann.

O especialista lembra que no Reino Unido, por exemplo, foi criado um programa de ajuda para resgatar acadêmicos e estudantes, e que isso se repetiu em outros países.

“Governos abriram representações diplomáticas dando apoio oficial, algo muito raro, o que em outros casos não aconteceu. Aqueles que procuravam asilo foram reconhecidos. Foi uma loucura, embaixadas como a sueca ou a francesa estavam cheias de exilados”, afirma.

“O golpe no Chile marca o início de um enfoque maior dos direitos humanos na integridade física, entendida como abuso ou tortura”, afirma Camila Vergara.

“Surge um maior compromisso da Europa com os direitos humanos.”

Michael Reid acrescenta que a prisão de Pinochet em Londres, em 1998, foi também um marco no debate jurídico.

“Isso deu o tom para a jurisdição universal contra crimes contra a humanidade”, diz ele.

4. A diáspora

O exílio político durante a ditadura de Pinochet representa o maior movimento migratório da história do Chile, totalizando mais de 200 mil pessoas forçadas a deixar o país.

Esta expatriação em massa — rumo a países como Argentina, México, Cuba, Itália, Suécia e Alemanha — influenciou muitos estrangeiros a se solidarizarem com o que estava acontecendo devido ao regime militar.

Mas talvez ainda mais importante do que o volume da migração foi o nível de organização política e cultural que esta diáspora tinha no mundo.

“Muitos exilados foram educados tanto política como economicamente. E conseguiram se inserir na esquerda europeia e latino-americana com muita facilidade”, explica Michael Reid.

Assim, os chilenos deixaram uma marca importante nos locais onde foram morar. E uma das áreas onde isso foi mais palpável é a música.

Os exilados conseguiram criar e difundir hinos de protesto que ressoam até hoje em todo o mundo.

“Muitos dos que saíram não eram apenas cantores, mas ativistas, que teriam dado a vida pela emancipação do povo”, explica Camila Vergara.

“A repressão brutal não teve meios-tons. Formou-se então uma rede de solidariedade quase invisível, onde os estrangeiros partilhavam suas lutas, suas canções e seus hinos de protesto”, acrescenta.

Muitos dos artistas da Nova Canção Chilena, movimento musical-social que nasceu na década de 1960, foram vítimas da ditadura, entre eles Víctor Jara, que foi torturado e assassinado no antigo Estádio Chile que hoje leva seu nome.

Sua obra virou referência internacional em canções de protesto.

Outros músicos sobreviventes levaram suas canções para o exílio. Inti Illimani manteve viva a chama do Chile na Itália, enquanto Patricio Manns o fez em Cuba e na França.

O grupo Quilapayún se estabeleceu nesse mesmo país.

Seu emblemático hino “O povo unido nunca será derrotado” permaneceu na memória global e se repete até hoje nas ruas de muitos lugares do mundo. E em diferentes idiomas, incluindo o português.

*Com reportagem de Dalia Ventura, da BBC Mundo

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