PLEBISCITO

A votação histórica na Austrália que rejeitou projeto que daria mais direitos a indígenas

Em plebiscito histórico, os australianos decidiram rejeitar uma proposta que reconheceria os indígenas na Constituição do país e daria mais direitos aos povos originários, como a criação de um órgão que teria de ser consultado sobre decisões do governo.

O 'não' ganhou com 60% dos votos -  (crédito: EPA)
O 'não' ganhou com 60% dos votos - (crédito: EPA)
BBC
Hannah Ritchie - Da BBC News em Sidney
postado em 15/10/2023 19:01 / atualizado em 15/10/2023 19:11

A população da Austrália rejeitou um plano para dar mais direitos e poderes aos povos indígenas do país em plebiscito realizado neste sábado (14/10).

Em todos os seis estados a população votou por não aceitar uma proposta para alterar a Constituição, medida que reconheceria os cidadãos indígenas e criaria um órgão consultivo formado por aborígenes - a entidade teria de ser conultada sobre ações do governo relacionadas aos indígenas.

O primeiro-ministro Anthony Albanese, que apoiava o projeto, afirmou que a derrota foi difícil. "Quando você mira alto, às vezes você fica aquém. Nós entendemos e respeitamos isso."

O líder da oposição, Peter Dutton, disse que o resultado foi “bom para o nosso país”.

O plebiscito, apelidado de "Voice", foi o primeiro da Austrália em mais de um quarto de século.

Com quase 70% dos votos contabilizados, o voto “Não” venceu com 60%, enquanto o “Sim” obteve 40%.

A rejeição se seguiu a uma campanha tensa.

Os apoiadores do Voice diziam que a consolidação dos direitos dos povos indígenas na Constituição uniria a Austrália e iniciaria uma nova era no país.

Segundo eles, a proposta levaria a melhores condições de vida para os aborígenes e os habitantes das ilhas do Estreito de Torres, que tem expectativa de vida mais baixa e resultados de saúde e educação piores do que outros australianos, em termos proporcionais.

A proposta afirmava que o Voice "faria representações" aos deputados e às autoridades políticas "sobre questões relacionadas com os povos aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres".

Já a oposição afirmava que a ideia causaria divisão, criaria "classes" especiais de cidadãos, e que o novo órgão consultivo atrasaria a tomada de decisões do governo.

Durante a campanha, a oposição ao Voice foi criticada por apelar aos eleitores indecisos com uma mensagem "Não sabe? Vote não", além de ser acusada ??de realizar uma campanha baseada em desinformação sobre os efeitos do plano.

O resultado deixa o primeiro-ministro Anthony Albanese à procura de um caminho a seguir com a sua visão para o país. Já a oposição ao seu governo provavelmente vai capitalizar a vitória.

Em pronunciamento, o Albanese afirmou que respeitava a votação e “o processo democrático que a concretizou”.

“Este momento de desacordo não nos define e não nos dividirá, não somos eleitores do Sim ou eleitores do Não, somos todos australianos. E é como australianos juntos, que devemos levar o nosso país para além deste debate, sem esquecer por que o tínhamos em primeiro lugar”, disse o primeiro-ministro.

"Muitas vezes na vida da nossa nação, a desvantagem enfrentada pelos aborígenes e pelos habitantes das ilhas do Estreito de Torres foi relegada para as margens. Este plebiscito e o meu governo a colocaram no centro."

Já Peter Dutton, da oposição, disse que a Austrália “não precisava” de tal votação. “O que vimos esta noite é que milhões de australianos rejeitam o plebiscito divisivo do primeiro-ministro.”

O principal defensor do Não, Warren Mundine, afirmou: "Este é um plebiscito que nunca deveríamos ter realizado porque foi construído sobre a mentira de que o povo aborígine não tem voz."

Quem apoiava a ideia ficou decepcionado com o resultado.

“Nossa liderança indígena se expôs nesse processo... Vimos uma campanha repugnante do Não, que foi desonesta, que mentiu para o povo australiano”, disse o defensor do Voice, Thomas Mayo, à ABC.

“Não estou culpando de forma alguma o povo australiano, mas quem eu culpo são aqueles que mentiram para o povo”, acrescentou o aborígine Kaurareg e Kalkalgal, habitante das ilhas do Estreito de Torres.

'Um roteiro para a reconciliação'

A Voz ao Parlamento foi proposta na Declaração do Coração de Uluru, um documento de 2017, elaborado por 250 líderes indígenas que estabeleceu um roteiro para a reconciliação com a Austrália.

Os cidadãos indígenas da Austrália – que representam 3,8% dos 26 milhões de habitantes do país – habitam a terra há cerca de 60 mil anos, mas não são mencionados na Constituição do país.

Segundo a maioria dos dados socioeconômicos, os indígenas são a população mais pobre da Austrália, com dificuldade de acesso a serviços públicos e com menor expectativa de vida.

O plebiscito marcou a 45ª vez que a Austrália tentou alterar o seu documento fundador – mas apenas oito propostas foram aprovadas.

Foi também a segunda vez que a questão do reconhecimento indígena foi submetida a votação nacional – a última tentativa foi em 1999.

A campanha do Sim disse que o Voice poderia enfrentar "a desigualdade arraigada" que o povo aborígene ainda enfrenta.

A campanha do Não viu isso de forma diferente. “Em vez de sermos ‘um’, estaremos divididos em espírito e em lei”, disse Peter Dutton, no início da campanha.

Os maiores especialistas na Constituição do país contestaram essas reivindicações, argumentando que o Voice não teria conferido direitos especiais a ninguém.

Mas o slogan da campanha “Voz divisiva”, que cobria faixas e cartazes do Não, acabou por ressoar entre os eleitores.

Um movimento separado Não, liderado pela senadora aborígine Lidia Thorpe e pelo movimento Blak Sovereign, dirigido por outra parcela indígena, se opôs ao Voice por diferentes razões.

O movimento pedia que fosse priorizado um tratado juridicamente vinculativo entre os povos das Primeiras Nações e o governo australiano.

“Esta não é a nossa Constituição, ela foi desenvolvida em 1901 por um bando de velhos brancos, e agora estamos pedindo às pessoas que nos coloquem lá. Não, obrigado”, disse Thorpe, reagindo ao resultado deste sábado.

Enquanto cenas de lágrimas e silêncio nos eventos do Voice inundavam a mídia, todos os lados do debate apelavam a um período de unidade nacional e reflexão enquanto a poeira baixa.

Mas os primeiros habitantes da Austrália, que demonstraram forte apoio ao Voice nas primeiras sondagens, temem que o resultado possa ser visto como mais uma rejeição.

“Há tantas pessoas que aspiravam que nosso país fosse visto de forma diferente nesta noite, e isso será profundamente perdido”, disse o senador Malarndirri McCarthy, que ocupa o cargo de ministro-assistente dos Indígenas Australianos.

“Tivemos muitas decepções ao longo de décadas e séculos, na verdade, somos pessoas resilientes e faremos um balanço”, acrescentou a indígena Yanyuwa.

Dean Parkin, diretor do grupo de campanha do Sim, tentou acalmar as alegações dos oponentes de que o objetivo era tirar direitos dos australianos.

“Quero falar muito diretamente com os australianos que votaram ‘não’ com dureza no coração. Por favor, entendam que os aborígenes e os habitantes das ilhas do Estreito de Torres nunca quiseram tirar nada de vocês”, disse ele.

“Nós nunca quisemos e nunca iremos fazer mal a vocês. Tudo o que queríamos é união com vocês, à nossa história indígena, à nossa cultura indígena, não para tirar ou diminuir o que vocês têm, mas para acrescentar, para fortalecer, para enriquecer”, completou Parkin.

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