COMPORTAMENTO

De onde vem o estereótipo negativo da "solteirona"?

O escritor francês Honoré de Balzac criou um "tipo" estigmatizado para mulheres solteiras de meia-idade. O ponto de partida? Seu ódio ao celibato.

"A Solteirona" ("La Vieille Fille", em francês) é um romance escrito em 1836 por Honoré de Balzac - (crédito: Getty Images)
BBC
Loup Belliard - The Conversation*
postado em 22/10/2023 17:12 / atualizado em 22/10/2023 19:33

Basta ouvir a expressão “solteirona” para evocar o antigo estereótipo de uma mulher na casa dos 40 anos, solteira e sexualmente inativa, que vive sozinha ou com alguns gatos, é bastante feia e muitas vezes um pouco amarga.

Um estereótipo que flerta com a imagem de uma bruxa.

Há décadas que as teóricas feministas questionam e criticam esta figura, cuja presença no nosso imaginário coletivo serve sobretudo como uma ameaça às mulheres que decidem não se casar ou se recusam a ser mães.

Se olharmos para a história destas representações, é difícil não nos depararmos com o romancista e dramaturgo francês Honoré de Balzac e a sua colossal A Comédia Humana, em que os retratos de solteironas se cruzam e se assemelham a ponto de constituírem um tipo social.

Um de seus romances é intitulado, inclusive, A Solteirona.

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Por que Balzac criou um “tipo” estigmatizado para mulheres solteiras de meia-idade?

Parece que o ponto de partida foi a sua aversão ao celibato, um estado que considerava “improdutivo” e “contrário à sociedade”.

Ele escreveu em O Cura de Tours:

“Permanecer criança, criatura do sexo feminino, nada mais é do que uma bobagem: egoísta e fria, é abominável. Este julgamento impiedoso é, infelizmente, demasiado justo para que as solteironas ignorem as suas razões."

No prefácio de seu romance Pierrette, ele chega a propor a retomada de um projeto de lei que remonta à Revolução Francesa, que buscava impor um imposto adicional aos solteiros.

Embora negue ser “celibatofóbico”, não podemos deixar de sentir a profunda aversão de Balzac por aqueles que mostram incapacidade de constituir família e, especialmente, de ter filhos.

É claro que esta rejeição não surgiu do nada, e a estigmatização do celibato não foi inventada por Balzac.

Mas foi ele quem deu à figura da solteirona a sua fama – por assim dizer – por meio de uma série de retratos que nos mostram diversas variações de personagens ligadas ao estereótipo da mulher solteira.

Em sua obra A Solteirona, ela zomba da ingenuidade de uma mulher tão pouco instruída nos caminhos do amor que nunca se casa.

Em A Prima Bette, ela descreve as manipulações de uma solteirona disposta a tudo para arruinar a própria família, claramente utilizando a estética da bruxa.

Finalmente, em O Cura de Tours e Pierrette, ele pinta um retrato duplo quase idêntico de duas solteironas amargas, gananciosas e feias que trazem a ruína para aqueles que as rodeiam.

Há um certo paradoxo na forma como Balzac caracteriza esses personagens.

Por um lado, ele critica o celibato como uma escolha de vida improdutiva e antinatural.

Por outro lado, parece querer demonstrar que este celibato não é uma escolha, mas sim advém da natureza profunda dos seus protagonistas, para quem o celibato é uma fatalidade absoluta da qual nunca escaparão.

O celibato aparece aqui menos como uma escolha livre do que como um estado próximo da assexualidade.

E se Balzac detesta o celibato, também detesta a ideia de casamento forçado ou infeliz, cujos efeitos desastrosos sobre a saúde e a psique das mulheres ele denuncia em seu romance A Mulher de Trinta Anos.

Então, por que exatamente as solteironas são censuradas e qual a razão do parasitismo das solteiras invocado pelo autor?

Em primeiro lugar, como você deve ter adivinhado, questiona-se a não-maternidade:

“Tornam-se amargas e tristes, porque um ser que falhou na sua vocação é infeliz; sofre, e o sofrimento gera o mal”, escreve ele em O Cura de Tours.

Nota-se também a ausência de desejo e amor.

As mulheres solteironas ficcionais de Balzac, desprovidas de afeto romântico ou conjugal, também são incapazes de desenvolver o amor familiar: Sylvie Rogron tortura sua jovem prima até a morte, enquanto a prima Bette manipula toda a sua família para mergulhá-la na miséria para alcançar seus objetivos.

A mensagem é clara: a mulher solteira é necessariamente um perigo para a família, estrutura essencial para o bom funcionamento da sociedade tradicional.

Ela é assim transformada em uma figura aterrorizante, até monstruosa e muitas vezes bestializada. No fundo, o que há de mais assustador na solteirona é a sua independência, a sua profunda incapacidade de se submeter a um homem.

Uma perturbadora ausência de vida sexual

É esta liberdade, tão estranha à visão das mulheres do século XIX, que Balzac demoniza.

Sob sua pena, as solteironas perdem a feminilidade e adquirem quase sistematicamente uma forma de androginia.

Uma mulher sem homem nem filhos, sem desejo de ser desejada, sem sensualidade nem sexualidade, parecia deixar de ser mulher para ele.

O debate não parece ter terminado hoje: é só pensar no livro de Marie Kock, Solteirona, publicado em 2022, ou na obra muito recente da escritora Ovidie, La chair est triste hélas (A carne está triste, infelizmente, na tradução literal para o português), ou na sua série documental France Culture.

Não ter vida sexual, ou mesmo reivindicá-la, por um curto período ou ao longo da vida, continua a ser perturbador aos olhos da sociedade.

Quando a heroína balzaquiana não está possuída por um marido ou amante, as forças se invertem, a dominação masculina é virada do avesso e Mademoiselle Gamard, Sylvie Rogron e a prima Bette subjugam os homens à sua volta numa escalada não natural.

Visto deste ângulo, o celibato feminino retratado em A Comédia Humana adquire uma qualidade anárquica, quase revolucionária, capaz de ameaçar instituições antigas.

E embora Balzac se esforce para nos mostrar o seu ódio por esses perigos ambulantes, também sentimos um certo fascínio pela profunda imoralidade das suas terríveis solteiras.

Afinal, um de seus romances mais encantadores, A Prima Bette, é animado por sua anti-heroína cruel e sórdida e seus planos maquiavélicos, que ela descreve com óbvia alegria, tornando-a, mais ou menos a despeito de si mesma, muito mais carismático e memorável do que suas “respeitáveis” consortes.

O que pensar então dessas solteironas balzaquianas?

A óbvia misoginia e “celibatofobia” que delas emanam não deve nos impedir de utilizar estas figuras arquetípicas para questionar a abordagem cultural da família e da maternidade ao longo do tempo.

O lugar das solteiras na sociedade, embora amplamente documentado na literatura, nas artes e nas ciências, continua a ser muito pouco estudado e questionado pelas ciências humanas.

Cabe a nós olhar para estas figuras balzaquianas, reinterpretá-las e até reapropriá-las.

*Loup Belliard é doutorando em literatura do século XIX e estudos de gênero na Université Grenoble Alpes (UGA).

*Este artigo foi publicado no site The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.

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