Meio ambiente

'Não consigo respirar': investigação da BBC revela como gás tóxico de petróleo põe milhões em risco no Oriente Médio

Os Emirados Árabes Unidos, anfitriões da COP28, estão quebrando a sua própria proibição à queima de gás, mostra investigação da BBC.

A queima de gás é uma imagem comum nos campos petrolíferos do Irã e do Iraque, entre outros países -  (crédito: BBC)
A queima de gás é uma imagem comum nos campos petrolíferos do Irã e do Iraque, entre outros países - (crédito: BBC)
BBC
Owen Pinnell e Sarah Ibrahim - BBC News Árabe
postado em 01/12/2023 07:03 / atualizado em 01/12/2023 08:54

Uma investigação da BBC indica que poluentes tóxicos liberados durante a queima de gás em campos petrolíferos ameaçam milhões de pessoas a mais do que o estimado anteriormente.

A queima de gás residual durante a extração de petróleo é praticada em toda a região do Golfo Pérsico – incluindo o país anfitrião da COP28, os Emirados Árabes Unidos. E novas pesquisas indicam que a poluição gerada pela queima se espalha por centenas de quilômetros, prejudicando a qualidade do ar em toda a região.

A notícia surgiu às vésperas da COP28, a cúpula do clima das Nações Unidas, que se inicia em Dubai no dia 30 de novembro.

Os Emirados Árabes Unidos proibiram a queima rotineira de gás nos campos de petróleo há 20 anos, mas imagens de satélite mostram que a prática permanece, apesar das possíveis consequências à saúde dos seus habitantes e dos países vizinhos.

Análises realizadas para o Serviço Árabe da BBC demonstram que os gases se espalham por centenas de quilômetros em toda a região. O estudo também analisou a poluição proveniente de poços no Iraque, Irã e Kuwait.

Nenhum dos países envolvidos comentou o assunto – eles se recusaram a fazer comentários ou não responderam aos pedidos enviados pela BBC.

Já as companhias petrolíferas responsáveis, no todo ou em parte, pelos locais onde ocorre a queima de gás, incluindo a BP (British Petroleum) e a Shell, afirmaram que estão trabalhando para reduzir esta prática.

Na segunda-feira (27), a BBC News revelou o vazamento de documentos que demonstravam como os Emirados Árabes Unidos planejaram usar seu papel de anfitrião da COP28 como uma oportunidade para negociar acordos de fornecimento de petróleo e gás.

O Relator Especial das Nações Unidas sobre direitos humanos e meio ambiente, David R. Boyd, declarou que as revelações da BBC foram "muito perturbadoras. Grandes companhias petrolíferas e Estados do Oriente Médio estão violando os direitos humanos de milhões de pessoas, deixando de combater a poluição do ar causada pelos combustíveis fósseis."

"Apesar do imenso sofrimento humano, as grandes petrolíferas e os países produtores continuam com seus negócios habituais, com total impunidade e responsabilidade zero", afirma Boyd.

É possível evitar a queima nos campos petrolíferos, capturando o gás para uso na geração de eletricidade ou aquecimento doméstico. Mesmo assim, o gás continua sendo queimado em todo o mundo.

Os poluentes liberados pela queima incluem PM2.5 (material particulado em suspensão), ozônio, NO2 e benzo(a)pireno (BaP). Em altos níveis ou sob exposição contínua, estas substâncias foram relacionadas a AVCs, câncer, asma e doenças cardíacas, segundo especialistas internacionais e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

A queima de gás também é uma fonte significativa dos gases do efeito estufa CO2 e metano, responsáveis pelo aquecimento global.

Duas décadas atrás, a Adnoc – companhia petrolífera nacional dos Emirados Árabes Unidos, dirigida pelo presidente da cúpula climática deste ano, Sultan al-Jaber – comprometeu-se a pôr fim à "queima rotineira de gás".

Mas as imagens de satélite analisadas pela BBC demonstram que a queima ocorre diariamente nos poços offshore. E os Emirados Árabes Unidos estão entre os maiores fornecedores de petróleo para o mercado britânico.

É difícil medir de forma confiável a poluição do ar causada pela queima de gás no solo e existem poucos dados oficiais. O que se sabe é que, a cada queima, os gases liberam uma certa quantidade de poluição.

Trabalhando em conjunto com o Serviço Árabe da BBC, cientistas ambientais combinaram esta informação com o volume de gás queimado (publicado pelo Banco Mundial) para calcular a poluição total.

Em seguida, uma simulação baseada nas condições meteorológicas atuais estimou como seria a movimentação dos gases na região.

O modelo indicou, por exemplo, que três campos petrolíferos offshore nos Emirados Árabes Unidos estavam contribuindo para a poluição do ar em Dubai e em Abu Dhabi, a centenas de quilômetros de distância.

Estudos demonstraram que crianças expostas a níveis elevados de PM2.5 apresentam maior propensão a desenvolver asma e chiado recorrente do que as crianças que não sofreram a mesma exposição.

As doenças respiratórias são uma das principais causas de morte na região. Os índices de asma dos Emirados Árabes Unidos estão entre os mais altos do mundo.

Poluição que vem do Iraque

A análise da BBC indica que, no caso do Kuwait, parte da poluição de origem humana vem da queima de gás em campos petrolíferos localizados a 140 km de distância, no Iraque.

O Iraque é responsável pelo segundo maior volume de queima de gás do mundo, segundo dados do Bando Mundial, ficando apenas atrás da Rússia. O país queima cerca de 18 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, que poderiam abastecer cerca de 20 milhões de lares europeus anualmente.

A maior fonte isolada de queima de gás do mundo é o imenso campo petrolífero iraquiano de Rumaila, administrado pela BP e pela PetroChina. O campo fica no sul do Iraque, a pouco mais de 30 km da fronteira com o Kuwait.

A investigação da BBC indica que o nível do poluente cancerígeno benzo(a)pireno no norte do Kuwait estava 10 vezes acima dos padrões europeus de segurança.

Em aldeias iraquianas próximas às queimas, os níveis de PM2.5 também eram extremamente altos. Eles atingiram picos horários de 100 microgramas por metro cúbico, enquanto o limite de segurança recomendado pela OMS é de 5 microgramas por metro cúbico.

Mesmo na Cidade do Kuwait, a 100 km de distância, os níveis ainda atingiam 5 a 10 microgramas por metro cúbico.

A poluição do ar em partes do Golfo Pérsico costuma ser apontada como responsável pelas frequentes tempestades de areia da região. Mas o pesquisador Barrak Alahmad, da Escola de Saúde Pública T. H. Chan da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, concluiu que este não é necessariamente o caso.

Alahmad e sua equipe analisaram por dois anos o ar e o pó do Kuwait para descobrir de onde estava vindo a poluição.

"Na verdade, descobrimos que apenas 40% vêm do deserto", afirma ele. "Quarenta e dois por cento vêm de fontes que incluem usinas energéticas, a indústria petrolífera e todas as indústrias que existem no Kuwait e fora do país."

Segundo seu estudo, a poluição restante vem dos altos níveis de trânsito do Kuwait. "É poluição do ar de origem humana, que podemos regulamentar, podemos reduzir e, de fato, podemos eliminar", declarou Alahmad à BBC.

O pesquisador acrescenta que as partículas de PM2.5 entram no fluxo sanguíneo das pessoas que as respiram e podem chegar rapidamente aos seus órgãos.

"Seus rins, seu cérebro, seu coração, em toda parte. Isso pode gerar um ataque de asma agudo. Em algum momento, pode trazer grande risco de morte", explica ele.

O engenheiro Abdulrahman Alameeri, de 39 anos, mora com sua família na Cidade do Kuwait. Seus dois filhos têm asma – particularmente Jassem, de seis anos, que já foi hospitalizado por diversas vezes.

Alameeri declarou à BBC que "na primeira vez em que [Jassem] teve um ataque de asma, ele não conseguia respirar. Ele ficou azul."

O professor de epidemiologia Akshaya Bhagavathula, da Universidade Estadual de Dakota do Norte, nos Estados Unidos, não participou do estudo da BBC. Ele analisou os resultados da pesquisa.

"Este estudo de modelo preliminar destaca possíveis impactos substanciais da queima de gás sobre a qualidade do ar na região do Golfo [Pérsico], mas são necessárias análises e medições adicionais para quantificar os riscos à saúde de forma abrangente", declarou o professor.

Os campos petrolíferos do Iraque e do Kuwait possuem estruturas de propriedade complexas. Elas permitem que as companhias internacionais de petróleo que ali trabalham, como a Eni, Lukoil e a BP, deixem de declarar todas as emissões causadas pelas suas atividades.

A BP tem atuação importante na região. Ela é uma das principais empresas contratadas para operar o campo petrolífero de Rumaila e da Kuwait Oil Company, que é responsável por 82% da queima de gás no país. A BP informou que o lucro das suas operações no Kuwait em 2023 foi de 53 milhões de libras (cerca de R$ 330 milhões).

Em resposta à BBC, a BP declarou: "Como informamos anteriormente, a BP não é, nem nunca foi, o operador do campo de Rumaila. Ainda assim, continuamos a apoiar ativamente o principal contratado no seu trabalho para auxiliar o operador do campo a reduzir suas queimas e emissões."

O campo de Rumaila é operado pela Rumaila Operating Organisation, que é um consórcio de organizações que inclui a Basrah Energy Company – uma parceria entre a BP e a PetroChina.

A solução

Em vez de queimar o gás, é possível capturá-lo para abastecer residências, segundo o Banco Mundial.

O custo inicial de instalação da tecnologia é alto – o Banco Mundial estima que seriam necessários, em todo o mundo, US$ 100 bilhões (cerca de R$ 490 bilhões). Mas, se fosse recolhido e vendido, o gás poderia render US$ 16 bilhões (cerca de R$ 78 bilhões) por ano.

Em 2013, o governo iraquiano e a gigante do petróleo e gás Shell fundaram a Basrah Gas Company, para capturar o gás nos três maiores campos do país – Rumaila, Qurna e Zubair. Mas, desde então, os níveis gerais de queima permaneceram estáveis – e até aumentaram em dois desses campos, segundo dados do Banco Mundial.

A Shell declarou à BBC que "o único propósito da Basrah Gas Company é capturar o gás para que não seja queimado nos três imensos campos petrolíferos operados por outras companhias. Ela captura mais de 63% do gás daqueles campos, mas não tem capacidade de capturar tudo."

A Lukoil declarou à BBC que opera "de acordo com a legislação iraquiana", enquanto a ENI afirmou que "colabora para reduzir e minimizar a queima de gás".

A PetroChina afirmou à BBC que está trabalhando em conjunto com a BP para auxiliar na reabilitação de Rumaila. E expressou sua extrema preocupação com as questões levantadas pela BBC.

Os Emirados Árabes Unidos não responderam ao pedido de comentários, mas sua companhia petrolífera nacional (Adnoc) declarou: "Em todas as nossas operações, estamos concentrados no nosso objetivo de eliminar a queima rotineira até 2030. Nós queimamos [gás] em índices inferiores à média global do setor."

Metodologia

A contribuição da queima de gás nos campos petrolíferos para o aumento dos níveis de poluição do ar na região é estimada por meio de simulações de modelo de transporte de substâncias (CTM, na sigla em inglês) regionais. A qualidade do ar na região foi reconstituída com e sem as emissões causadas pela queima de gás.

O uso de simulações de CTM permite estimar como se dispersam os poluentes emitidos pelas queimas de gás, sua interação com a composição atmosférica existente, a produção de poluentes secundários e sua contribuição para a qualidade do ar na região.

As emissões de poluentes causadas pelas queimas de gás nos campos petrolíferos foram estimadas a partir dos volumes de gás queimado informados pelo rastreador de queima de gás do Banco Mundial e dos fatores de emissão disponíveis em publicações científicas e em manuais de referência sobre inventários de emissões.

A simulação foi limitada a períodos de dois meses. Seria desejável um ano inteiro para descrever completamente o impacto da variabilidade meteorológica sobre a composição atmosférica e a qualidade do ar, mas acreditamos que a simulação de dois meses completos seja uma opção aceitável para obter uma primeira estimativa confiável do impacto das queimas de gás em diferentes condições sazonais.

A composição atmosférica da região foi reconstruída, utilizando um sistema de modelo tridimensional obtido pela reunião do modelo meteorológico WRF e FARM CTM.

Criação do modelo ambiental: AriaNet. Com análise metodológica de Barrak Alahmad, Dr. Aidan Farrow, Dr. Eric Kort, Dr. Karn Vohra, Dr. Akshaya Bhagavathula e Dr. Ravi Ravishankara.

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