Um site na internet criado por um ex-fuzileiro naval americano que agora mora na Rússia alimentou o boato de que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, teria comprado dois iates de luxo com dinheiro recebido de ajuda dos Estados Unidos.
A acusação é falsa, mas a desinformação se espalhou. Ela viralizou na internet e foi repetida por congressistas americanos responsáveis pela tomada de decisões fundamentais sobre os gastos militares do país.
A acusação era inacreditável. Usando dois conselheiros como procuradores, Zelensky teria pago US$ 75 milhões (cerca de R$ 366 milhões) por dois iates. Não apenas o governo ucraniano negou terminantemente a história, como os dois navios em questão não chegaram sequer a ser vendidos.
Mas, mesmo sendo falsa, a história chegou até membros do Congresso americano e seus líderes afirmam que todas as decisões sobre novos auxílios à Ucrânia serão postergadas para o ano que vem.
Alguns congressistas se opõem veementemente a oferecer mais assistência.
No X, antigo Twitter, a congressista republicana Marjorie Taylor Greene afirmou que "qualquer pessoa que vote a favor de financiar a Ucrânia está financiando o esquema financeiro mais corrupto de qualquer guerra estrangeira da história do nosso país". E acrescentou um link para a história da falsa compra dos iates.
O senador republicano Tom Tillis, que é a favor do apoio militar à Ucrânia, falou para a rede de TV CNN pouco depois que os senadores realizaram um encontro a portas fechadas com Zelensky na semana passada.
"Acho que a ideia de corrupção surgiu porque alguns disseram que as pessoas irão comprar iates com o dinheiro", declarou Tillis. "[Zelensky] dissuadiu as pessoas dessas ideias."
Tillis discordou de outro senador republicano, J. D. Vance, que também mencionou Zelensky e os navios na mesma frase.
"Existem pessoas que tirariam dinheiro da previdência, levando nossos avós à pobreza, por quê? Para que um dos ministros de Zelensky possa comprar um iate maior?", disse Vance em um podcast apresentado por Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump, no qual discutia prioridades orçamentárias.
Embora o caso dos iates seja falso, a BBC descobriu que a história recebeu impulso de um site ligado à Rússia, supostamente hospedado em Washington. Pesquisadores afirmam que ele é "provavelmente uma ferramenta com propósito específico de criação de narrativas, ligado ao governo russo".
O site de 'Washington' ligado à Rússia
A história surgiu pela primeira vez no final de novembro em um canal obscuro do YouTube, com apenas um punhado de seguidores e um único vídeo disponível.
No dia seguinte, a notícia foi reproduzida em um site chamado DC Weekly, ao lado de fotografias dos dois iates, chamados Lucky Me e My Legacy, e de documentos que supostamente confirmavam a venda dos navios para associados de Zelensky.
Mas os negociantes de iates de luxo da empresa onde os dois navios estavam disponíveis para venda declararam que as acusações são falsas. Os documentos de venda aparentemente são forjados.
E, em vez de terem sido comprados por Zelensky ou seus conselheiros próximos, Lucky Me e My Legacy ainda estão à venda.
A reportagem do DC Weekly fez disparar uma série de especulações online. Inúmeras fontes publicaram links para a história e seu conteúdo, mencionado em diversas plataformas.
Mas o site não é uma publicação semanal, como o nome indica. Nem é sediado na capital americana.
Estudos dos pesquisadores de desinformação Darren Linvill e Patrick Warren, da Universidade de Clemson, nos Estados Unidos, concluíram que o DC Weekly foi lançado por John Mark Dougan, ex-fuzileiro naval americano e ex-policial do Estado da Flórida, que se mudou para a Rússia em 2016.
Dougan passou três anos como delegado do escritório do xerife do condado de Palm Beach, na Flórida. Depois que saiu, em 2009, ele lançou um site para espalhar boatos sobre seu antigo empregador.
Desde que se mudou para a Rússia, ele se reinventou como jornalista cobrindo a invasão da Ucrânia – e espalhou diversas afirmações falsas e sem fundamento. Uma delas foi que a Rússia estaria tentando destruir laboratórios de armas biológicas.
Os pesquisadores de Clemson descobriram que o DC Weekly está repleto de reportagens copiadas de outros sites e reescritas por mecanismos de inteligência artificial. Os "repórteres" do site assinam com nomes falsos e suas fotos são copiadas de outros lugares da internet.
Misturadas com as reportagens reescritas, encontram-se notícias originais duvidosas, aparentemente para dar ao site um ar de legitimidade.
Uma dessas reportagens foi a origem do boato sobre os iates. Os pesquisadores de Clemson rastrearam como a história viralizou após a versão publicada pelo DC Weekly.
Evidências coletadas pelos pesquisadores indicam que o site continuou a ser hospedado no mesmo servidor de diversos outros sites de John Mark Dougan. A BBC Verify também descobriu que parte do site DC Weekly está hospedada em um servidor na capital russa, Moscou.
No início deste ano, Dougan foi identificado como comentarista do DC Weekly em diversas palestras ministradas por ele em uma instituição acadêmica filiada ao Ministério do Exterior da Rússia.
"É bastante óbvio para mim que Dougan está envolvido com o DC Weekly há muito tempo e permanece ligado à infraestrutura por trás do site", declarou Warren.
John Mark Dougan declarou por mensagem de texto que "nega terminantemente essas acusações" e que vendeu o DC Weekly há vários anos, por US$ 3 mil (cerca de R$ 14,6 mil).
Ele afirmou que não lembra quem é a pessoa a quem ele vendeu o site e que perdeu os documentos após ter sido expulso de plataformas de pagamento e perdido o acesso a contas de correio eletrônico, devido às sanções financeiras contra a Rússia. Ele afirma que não tem nenhuma relação com as operações atuais do site.
Os pesquisadores afirmam que o site é parte de uma máquina de propaganda pró-Rússia muito maior.
"Realmente não importa muito se esta pessoa específica está por trás do site", segundo Warren. "O principal é que o site é um elemento importante em uma operação muito eficaz e substancial de influência pró-russa que precisa ser denunciada e compreendida."
Sobre a reportagem do DC Weekly, o escritório da Presidência da Ucrânia declarou que "todas as informações da reportagem são falsas. Zelensky e seus familiares não têm, nem nunca tiveram iates."
Nós entramos em contato com Tom Tillis e Marjorie Taylor Greene pedindo seus comentários.
Um porta-voz de J. D. Vance declarou: "Há anos, todos no Ocidente reconheceram que a Ucrânia era um dos países mais corruptos do mundo. Por alguma razão, todos esqueceram isso, assim que começamos a enviar para eles bilhões de dólares em ajuda externa."
Compra de joias
O caso dos iates é mais uma história de ficção sobre as preocupações existentes com a corrupção, que é um problema antigo na Ucrânia. Enfrentá-la é uma das exigências que o país precisaria cumprir para se associar a instituições ocidentais, como a União Europeia.
No Índice de Percepção da Corrupção da organização Transparência Internacional, a Ucrânia ocupa o 116° lugar entre 180 países, embora os esforços dos últimos anos tenham feito sua posição melhorar significativamente.
Mas a atenção dedicada aos problemas reais em curso no país com a corrupção foi pequena, em comparação com os comentários online sobre histórias falsas baseadas em documentos falsificados e obscuras contas nas redes sociais.
Em outubro, uma acusação amplamente compartilhada nas redes sociais indicava que a esposa do presidente Zelensky teria gasto uma fortuna com joias em Nova York, nos Estados Unidos, durante a estada do presidente ucraniano na cidade para discursar nas Nações Unidas.
Como no caso dos iates, esta acusação se originou em um canal do YouTube com muito poucos seguidores e apenas um vídeo, que apresentava uma mulher dizendo ser do Benin. Ela afirmou que trabalhava na loja Cartier da 5ª Avenida, em Nova York.
A mulher mostrou um recibo com data de 22 de setembro, com o nome de Olena Zelenska e uma conta de US$ 1,1 milhão (cerca de R$ 5,4 milhões) por um bracelete, brincos e um colar.
Mas ferramentas de reconhecimento facial encontraram coincidência próxima entre a mulher do vídeo e fotos nos perfis de redes sociais de uma mulher que mora em São Petersburgo, na Rússia. Quando observamos as imagens, ela parece ser a mesma pessoa do vídeo do YouTube.
A história viralizou no Facebook, TikTok e Telegram. A conta da Embaixada da Rússia no Reino Unido no X compartilhou o caso com o comentário: "o melhor uso do dinheiro dos contribuintes britânicos da história".
Mas o recibo é uma falsificação clara. Em 21 de setembro, o casal Zelensky já havia deixado Nova York e viajado para o Canadá.
E um site em língua inglesa foi fundamental para espalhar o boato: o DC Weekly.
A BBC Verify e os pesquisadores de Clemson encontraram diversas reportagens postadas no DC Weekly entre agosto e dezembro deste ano, seguindo o mesmo padrão.
Elas apresentavam a falsa alegação de que o príncipe britânico Andrew, irmão do rei Charles 3º, teria visitado secretamente a Ucrânia; que a Ucrânia teria fornecido armas para o Hamas; que uma organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos estaria colhendo órgãos na Ucrânia; e que o governo Zelensky teria permitido que empresas ocidentais utilizassem terras agrícolas da Ucrânia para descarte de lixo tóxico.
As reportagens do DC Weekly eram frequentemente publicadas dias depois das acusações aparecerem pela primeira vez no YouTube.
Além do DC Weekly, algumas das acusações (incluindo sobre as joias da Cartier e os iates) também foram publicadas em diversos websites pró-Kremlin em inglês, além de websites jornalísticos legítimos da África que aceitam conteúdo patrocinado. E algumas das reportagens foram aproveitadas por outros portais e contas em redes sociais.
Mas, com a história dos iates, as pessoas responsáveis pelo DC Weekly aparentemente atingiram um nível de sucesso inédito. Suas acusações foram repetidas por algumas das pessoas mais poderosas do Congresso americano.
*Com colaboração de Paul Myers.
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