Horror no Oriente Médio

Horror no Oriente Médio: Luto e tristeza no Natal de Belém

Sob cerco de Israel e em solidariedade aos palestinos de Gaza, cidade onde Jesus nasceu cancela festividades. Sem peregrinos, turismo amarga prejuízos milionários e população enfrenta angústia

Padre Issa Thaljieh, padre ortodoxo grego da Basílica da Natividade, se ajoelha diante do ponto que marca o local da manjedoura de Cristo  -  (crédito: Arquivo pessoal )
Padre Issa Thaljieh, padre ortodoxo grego da Basílica da Natividade, se ajoelha diante do ponto que marca o local da manjedoura de Cristo - (crédito: Arquivo pessoal )
postado em 24/12/2023 06:00

Todos os anos, Belém, na Cisjordânia, se enfeita para celebrar o aniversário de seu filho mais ilustre. Uma árvore natalina gigantesca se acende, corais se espalham por vários pontos da cidade de pouco mais de 28 mil habitantes, grupos de teatro encenam a chegada do Menino Jesus e a visita dos Reis Magos. Na Praça da Manjedoura, turistas e fiéis esperam pelo momento de entrar na Basílica da Natividade, o local que guarda a gruta onde a Virgem Maria e José teriam buscado abrigo, 2023 anos atrás, para que Cristo nascesse. Neste ano, será diferente.

Pela primeira vez, de acordo com registros históricos, enquanto cristãos de todo o mundo celebrarão a noite de Natal, Belém estará vazia e sem festividades. Reflexos do cerco imposto pelo Exército de Israel à Cisjordânia e dos 77 dias de guerra na Faixa de Gaza, a 77km dali. Desde 7 de outubro, mais de 20 mil palestinos foram mortos — 259 por dia. Sem turistas e peregrinos, Belém sente o impacto na economia e mergulha no luto e na tristeza, ao perder um pouco de sua alma. No sábado à noite (23/12), um presépio foi inaugurado do lado de fora da Basílica, simulando um bombardeio à Gruta da Natividade, com blocos de concretos espalhados e arame farpado. 

Palestinos caminham pela praça vizinha do lado de fora da igreja onde encontra a gruta
Palestinos caminham pela praça vizinha do lado de fora da igreja onde encontra a gruta (foto: Hazem Bader/AFP)

Hanna Samir Hanania, prefeito de Belém, admitiu ao Correio que o Natal deste ano terá um "formato diferente" em relação aos últimos e não economizou palavras ao citar a guerra mais ao sul. "Estamos testemunhando uma agressão muito complicada contra o nosso povo, na Faixa de Gaza. É um genocídio, uma limpeza étnica. Além disso, há um cerco militar imposto à Cisjordânia. Todas as entradas de Belém foram fechadas por Israel. Vivemos como em uma jaula", lamentou. Ele destacou que a cidade depende do setor do turismo, completamente estagnado desde 7 de outubro. "As pessoas, mesmo os palestinos, não podem vir rezar por causa da ocupação israelense."

Isolada de outras cidades e do restante do território palestino, Belém não teve outra escolha. "Cancelamos a cerimônia de acendimento da árvore, o mercado natalino e as atividades para as crianças", explicou Hanania. Segundo ele, foi uma forma de enviar uma mensagem "muito clara" para a comunidade internacional. "Isso reflete o que acontece em Gaza e o que ocorria há 2 mil anos. Quando Jesus nasceu, o rei Herodes decidiu matar todos os bebês do sexo masculino de Belém. A Virgem Maria fugiu com Jesus para o Egito, a fim de protegê-lo. Agora, famílias e mães na Faixa de Gaza carregam seus filhos em busca de um lugar seguro, caso isso seja possível", comparou o prefeito.

Lockdown

Issa Thaljieh, padre ortodoxo grego da Basílica da Natividade há 12 anos, contou ao Correio que nasceu em 1983. "Não me lembro de um único ano em que não houve Natal em Belém. Nossa cidade era repleta de amor, de corais natalinos, de música. Grupos musicais e turistas vinham de várias partes do mundo. É a primeira vez que vejo Belém durante o Natal dessa forma", desabafou. Até mesmo durante a pandemia da covid-19 era comum ver visitantes de Jerusalém, Nazaré, Haifa, Nablus, Jenin e Ramallah. "Dessa vez, não há turistas, nem peregrinos, nem visitantes da Terra Santa. Belém vive uma espécie de lockdown. Ninguém consegue entrar nem sair", disse o religioso. A maioria dos moradores esboça medo, terror e desesperança ante a guerra na Faixa de Gaza. "Muitos acham que não haverá mais emprego amanhã, nem hotéis e restaurantes. A economia está muito ruim", sublinhou Thaljieh.

Em frente à Basílica da Natividade, um presépio montado em meio ao concreto, simbolizando os escombros de Gaza, e entre arame farpado
Em frente à Basílica da Natividade, um presépio montado em meio ao concreto, simbolizando os escombros de Gaza, e entre arame farpado (foto: Carmen J. Ghattas)

O pároco da Basílica da Natividade destacou a importância de Belém. "A mensagem de paz e de amor começou a partir da nossa cidade. Infelizmente, tudo está cancelado neste ano", afirmou. Thaljieh relatou que, na noite deste domingo, haverá apenas orações no interior do templo. "Os patriarcas de Jerusalém, responsáveis pela Basílica, concordaram em suspender as celebrações. Queremos mostrar solidariedade para com nossos irmãos e irmãs de Gaza, que vivem sem abrigo, sem comida, sem nada", declarou. Ele reforçou que os cristãos palestinos não conseguem nutrir qualquer sentimento em relação ao Natal deste ano. "O Natal serve para sentirmos os pobres, as pessoas que vivem sob circunstâncias difíceis. Essa é a mensagem de Belém e da população da cidade: precisamos de paz verdadeira, de amor real. Precisamos de liberdade, de justiça e de dignidade. Apesar da situação, ainda rezamos pela paz."

Por telefone, Rula Ma'ayah, ministra do Turismo da Palestina, afirmou ao Correio que os prejuízos para Belém chegam a US$ 2,5 milhões por dia. "Muitas pessoas trabalham no setor turístico. Temos quase 100 hotéis na cidade. Há lojas de souvenires, restaurantes, etc. Todos os estabelecimentos enfrentam problemas. Não há turistas. Recebemos o Natal com tristeza e sofrimento", lamentou. Durante o período natalino, dezenas de milhares de turistas e de palestinos viajavam a Belém para celebrar o nascimento de Jesus. Neste ano, o cenário é de desolação. 

"Na condição de pai palestino e cristão, sinto que minha família está em luto por não podermos celebrar", comentou o prefeito, Hanna Hanania. Os quatro filhos pediram que não ganhassem presentes, nem festejassem, nesta noite de domingo. "Sabem que crianças estão sendo queimadas vivas em Gaza. Não quiseram nem mesmo colocar uma árvore de Natal dentro de nossa casa. Como prefeito, vejo que Belém é uma cidade de paz. Essa mensagem nobre nasceu com Jesus, em nossa cidade, e foi distribuída por todo o mundo. Pedimos à comunidade internacional que devolva essa mensagem a Belém, que precisa de paz. Que force Israel a parar com essa agressão e esse genocídio."

DEPOIMENTO

"Façam uma oração por nós"

Roni Tabash, dono de uma loja fundada pelo avô em 1927, em Belém: luta pela esperança
Roni Tabash, dono de uma loja fundada pelo avô em 1927, em Belém: luta pela esperança (foto: Arquivo pessoal )

"Meu avô abriu a nossa loja em 1927. Depois, meu pai herdou o negócio. Sou da terceira geração. Nosso comércio está em frente ao local do nascimento de Jesus. Vendemos todos os tipos de suvenires, como presépios, rosários e outras coisas. Temos, também, 25 famílias produzindo para nós as esculturas em madeira de oliveira e outras coisas.

Nunca tivemos um Natal como este, sem peregrinos. Há três meses, nenhum cliente vem à nossa loja. Ainda assim, abrimos todos os dias. Para não perdermos a esperança. Meu pai terá, neste ano, o 60º Natal trabalhando em nossa loja. Ele não quer ficar em casa. O nosso comércio e a Praça da Manjedoura são parte de nosso coração, de nossa história. Nossa presença no lugar é muito importante.

Cerca de 80% da população de Belém depende dos peregrinos e do turismo. Como um comerciante que mantém uma loja perto do local do nascimento de Jesus, peço a todos, como peregrinos, que venham visitar Belém, não apenas a Basílica da Natividade, mas as pedras vivas da cidade. Peço a todos que façam uma oração por nós, especialmente pelas crianças de Belém e da Terra Santa. Nossas crianças são nosso futuro. Para que elas tenham uma vida melhor do que a nossa."

Rony Tabash, 42 anos, dono da loja Tabash Souvenirs, na Rua Cáritas, 27 minutos a pé da Basílica da Natividade, em Belém. Depoimento ao Correio

EU ACHO...

Rula Ma'ayah, ministra do Turismo da Palestina
Rula Ma'ayah, ministra do Turismo da Palestina (foto: Arquivo pessoal )

"O nosso Natal será repleto de tristeza e de luto, ainda que deveria ser um dia de felicidade e de celebrações. Nós esperamos que o Natal nos dê esperança de um futuro melhor, sem ocupação, para que nosso povo viva em liberdade e em dignidade, como outros povos do mundo."

Rula Ma'ayah, ministra do Turismo da Palestina

Hanna Samir Hanania, prefeito de Belém
Hanna Samir Hanania, prefeito de Belém (foto: Arquivo pessoal )
 

"Decidimos cancelar todas as celebrações na época do Natal. Não podemos festejar o Natal nessa situação. Mesmo assim, mantemos o espírito natalino. Receberemos os patriarcas — católico, ortodoxo e armênio — e oraremos dentro das igrejas."

Hanna Samir Hanania, prefeito de Belém

  • Em frente à Basílica da Natividade, um presépio montado em meio ao concreto, simbolizando os escombros de Gaza, e entre arame farpado
    Em frente à Basílica da Natividade, um presépio montado em meio ao concreto, simbolizando os escombros de Gaza, e entre arame farpado Foto: Carmen J. Ghattas
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