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ÁSIA

As 'fake news' sobre os EUA que a China usa para tentar influenciar eleição em Taiwan

Com proximidade de votação para definir a liderança de Taiwan, proliferação de desinformação na ilha preocupa analistas

Pesquisas mostram que a confiança de Taiwan nos EUA está diminuindo -  (crédito: Getty Images)
Pesquisas mostram que a confiança de Taiwan nos EUA está diminuindo - (crédito: Getty Images)
BBC
Tessa Wong - BBC News em Taipei
postado em 10/01/2024 17:06 / atualizado em 10/01/2024 18:18

O boato era antigo, mas eficaz: os taiwaneses estavam sendo alimentados com "carne de porco envenenada importada dos Estados Unidos".

A fake news, que voltou a se espalhar semanas atrás, foi acompanhado de outro: o governo de Taiwan estava colhendo secretamente sangue de cidadãos e fornecendo-os aos EUA para fabricarem uma arma biológica para atacar a China. Ambos foram rapidamente desmentidos.

Mas são exemplos das narrativas que têm se espalhado em Taiwan antes das eleições presidenciais e legislativas do próximo sábado (13/1).

A tática "Yimeilun", ou "ceticismo em relação aos Estados Unidos", questiona a fidelidade do maior aliado de Taiwan, retratando a ilha como um fantoche explorado pelos americanos.

O seu objetivo final, dizem os analistas, é criar uma barreira entre Taiwan e os EUA — e empurrar os taiwaneses para os braços da China.

"Parece haver esta narrativa de que os EUA não apoiarão Taiwan ou abandonarão a ilha se houver uma guerra, ou se a situação não for vantajosa para os Estados Unidos", disse Kuang-shun Yang, um pesquisador de desinformação que cunhou o termo Yimeilun em 2018.

Especialistas em desinformação dizem que a China tem parte na divulgação destas mensagens.

Nem sempre se trata de teorias da conspiração — na maioria das vezes é um destaque de notícias que mostram os Estados Unidos sob um prisma negativo ou os apontam como uma superpotência não confiável.

"Para a China, esta é uma batalha pela opinião pública", disse Puma Shen, especialista taiwanês em desinformação chinesa e nomeado para o Parlamento pelo Partido Democrático Progressista.

"Persuadir todos de que a China é o melhor país é mais difícil, mas convencer todos de que a América é problemática é relativamente mais fácil. Para a China, isso seria considerado um sucesso."

Quando a gigante taiwanesa de chips TSMC se expandiu nos EUA, isso foi descrito como uma coerção americana e um "esvaziamento" dos recursos de Taiwan. E a venda de armas dos Estados Unidos a Taiwan foi considerada como um "roubo" do dinheiro da ilha - os boatos eram de que os armamentos não seriam de qualidade.

Essas estavam entre os 84 tipos de narrativas de ceticismo em relação aos Estados Unidos descobertas pelo think tank Iorg, entre 2021 e 2023, em meios de comunicação de língua chinesa, redes sociais, fórum online PTT e na plataforma de mensagens Line.

Os departamentos de propaganda dos governos provinciais chineses e os meios de comunicação estatais amplificaram essas narrativas e, em alguns casos, foram mesmo as primeiras fontes identificadas.

Mas a maioria das fontes eram políticos taiwaneses e organizações de imprensa amigas da China. Há muito tempo existem suspeitas de influência do Estado chinês.

Um relatório da Reuters de 2019 encontrou provas de que autoridades do continente pagavam meios de comunicação de Taiwan para disseminarem desinformação.

O boato sobre armas biológicas surgiu pela primeira vez em uma reportagem infundada de um jornal taiwanês que alguns sugeriram envolver Pequim.

O boato sobre a carne suína dos EUA começou com publicações alegando, sem nenhuma evidência, que o governo estava secretamente fazendo passar a carne suína americana como taiwanesa.

Semanas depois, outros fizeram a afirmação sobre produtos venenosos de carne suína dos Estados Unidos, que foi atribuída a um antigo relatório já desmentido.

A ideia de que a carne suína dos Estados Unidos poderia não ser segura para consumo tem sido assunto de discussões em Taiwan há anos.

Mas voltou a tempo do que parece ser uma corrida presidencial acirrada. Shen estima que qualquer campanha de desinformação só precisaria convencer cerca de 3% dos eleitores para afetar o resultado das eleições.

Antes das últimas eleições, em 2020, Taiwan assistiu a uma enorme onda de desinformação que se acreditava ter vindo da China. Embora tenha eventualmente falhado — a presidente Tsai Ing-wen conquistou o seu segundo mandato com uma vitória esmagadora — alarmou profundamente muitos taiwaneses.

Mas o cenário político mudou desde então. Por um lado, as tensões com a China aumentaram — Pequim reforçou repetidamente a unificação como objetivo, oferecendo a paz sem excluir o uso da força.

E segundo, a confiança nos Estados Unidos está diminuindo.

As pesquisas mostram que o público taiwanês ainda confia muito mais nos Estados Unidos do que na China. Mas a pesquisa anual American Portrait, conduzida por acadêmicos taiwaneses, revelou que em 2023 apenas 34% dos taiwaneses acreditavam que os EUA são um país confiável, em comparação com 45% em 2021.

Outra pesquisa realizada pela Fundação de Opinião Pública de Taiwan descobriu que 51% dos taiwaneses com cerca de 20 anos se identificam com as narrativas de ceticismo sobre os EUA, a taxa mais alta entre todas as faixas etárias.

A organização eleitoral disse que uma possível razão para esses resultados era porque os jovens taiwaneses eram mais propensos a serem enviados para a linha de frente de qualquer possível guerra.

Mas a maior parte disso pode ser atribuída às próprias ações americanas. A desastrosa retirada das tropas do Afeganistão e a relutância de um Congresso dividido em continuar a financiar a Ucrânia na sua guerra contribuíram para os receios taiwaneses de que os EUA os abandonariam ou não interviriam se a China atacasse, dizem os analistas de um jornal pró-China de Hong Kong.

Em 2021, Jaw Shaw-kong, o candidato a vice-presidente do Kuomintang, que apelou por laços mais estreitos com a China e promoveu o ceticismo contra os EUA, advertiu que "se Taiwan não quer tornar-se um segundo Afeganistão, então tem de pensar com clareza se quer a guerra ou paz".

O ceticismo em relação aos Estados Unidos também teve um papel na "semeadura" da dúvida, disse Chihhao Yu, autor do estudo do Iorg. "E então, quando os EUA cometessem um erro, isso confirmaria as suspeitas óbvias."

Mentalidade órfã

Assim como qualquer outra propaganda e desinformação, o ceticismo sobre os EUA também prospera com base no medo, seja em relação à segurança alimentar ou pela ameaça de guerra.

Mas também mina algo fundamental na mentalidade dos taiwaneses: uma insegurança de décadas sobre a sua relação com a América.

Isto acontece por conta da "mentalidade órfã" de Taiwan, disse Yang. "Taiwan foi uma colônia de muitos impérios, transferidos repetidamente pelos seus governantes anteriores. Essa perspectiva histórica sempre residiu na memória coletiva."

"Mas o gatilho mais direto foi em 1979."

Aquele foi o ano em que os EUA surpreenderam o mundo e consternaram Taiwan quando formalizaram relações diplomáticas com a China após meses de negociações secretas. Ao mudar o reconhecimento da capital chinesa de Taipei para Pequim, os EUA cortaram os laços oficiais com a ilha.

Mas também aprovoaram uma lei que determina que devem ajudar Taiwan a defender-se. Até hoje mantém estreitas relações informais com a ilha e vende armas para ela.

Mas a ruptura diplomática plantou a ideia "de que Taiwan poderia ser novamente abandonada pelos Estados Unidos", disse Yang.

O trauma foi tão profundo que inspirou uma canção taiwanesa de sucesso dos anos 1980 chamada "Órfão da Ásia".

Ela fala de um "orfão chorando ao vento" enquanto "o vento ocidental canta uma canção triste no Oriente".

É por isso que o ceticismo em relação aos Estados Unidos funciona muitas vezes em conjunto com as narrativas pró-China — encorajando Taiwan a envolver-se mais com a China para garantir a paz, acrescentou Yang.

"Se Taiwan é um órfão, então deveria ser um filho pródigo voltando para casa, para a grande nação (da China), em vez de permanecer como subsidiária dos EUA."

As garantias americanas são os melhores antídotos para o ceticismo dos EUA, dizem os analistas.

"Se o nosso aliado puder estar mais consciente dos perigos do ceticismo sobre os EUA e reiterar os aspectos positivos da nossa parceria… as pessoas veriam que esta (relação) é boa para nós", disse Yu.

"A China faz isso o tempo todo, eles falam sobre todos os benefícios que Taiwan obtém deles. Mas você não costuma ver isso nas mensagens políticas dos EUA."

A ilha reforçou as suas defesas anti-desinformação com campanhas de educação pública, linhas diretas de denúncia e até chatbots de IA que apontam notícias falsas.

O Parlamento de Taiwan também ponderou implantar leis anti-desinformação, embora isso tenha suscitado preocupações sobre restrições à liberdade de imprensa.

Mas estima-se que Taiwan já seja o local mais visado no mundo pela divulgação de informações falsas por governos estrangeiros.

Anos de propaganda e desinformação polarizaram a sociedade e criaram uma maior desconfiança nos fatos, segundo Wei-ping Li, pesquisador do grupo anti-desinformação Taiwan Factcheck Center.

"O problema não é tanto a desinformação, mas sim a atitude das pessoas em relação à informação agora... eles perguntarão, é possível confiar nisso? Eles farão um julgamento sobre a credibilidade da informação com base na sua filiação partidária ou opiniões políticas", disse ela.

À medida que Taiwan melhorar na sua defesa, a China também melhorará o seu discurso de influência, com métodos mais sofisticados, alertou Shen.

As constantes advertências do governo de Taiwan sobre os perigos da influência chinesa, combinadas com os esforços de Pequim para estigmatizar as críticas à China, resultaram em fadiga entre os taiwaneses comuns, disse ele.

"Hoje em dia, mesmo que queiramos discutir as questões da China, haverá pessoas que dirão... Por que não estão discutindo as questões dos Estados Unidos?"

Reportagem com colaboração de Sucheera Maguire.

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