Judiciário

Como nova regra do foro privilegiado pode ampliar poderes do STF sobre Bolsonaro e outros políticos

Já há maioria no Supremo para aprovar mudança que vai mater investigações contra políticos na Corte mesmo após fim dos mandatos

Um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) já tem a maioria de votos para modificar o funcionamento do foro por prerrogativa de função, conhecido como foro privilegiado — direito concedido a autoridades de não ser julgado na primeira instância judicial.

Com a mudança, políticos investigados por supostos crimes cometidos durante seu mandato e relacionados ao exercício do cargo manterão o foro especial mesmo após deixarem a função.

Pela regra atual, fixada em 2018, uma investigação ou ação contra um político com foro deve ser remetida à primeira instância quando ele deixa o cargo, a não ser que o processo esteja em fase final de tramitação (já nas alegações finais das partes).

A justificativa para a mudança é evitar o chamado "elevador processual", quando um processo ou investigação fica mudando de instância judicial conforme o político perde ou conquista um mandato com foro privilegiado.

Para os ministros que votaram a favor da alteração, esse vaivém torna o andamento judicial mais lento, favorecendo a impunidade.

A mudança foi proposta pelo ministro Gilmar Mendes, relator de um habeas corpus apresentado pelo senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), em que o parlamentar pede para continuar sendo julgado pelo STF em uma ação que o acusa de ter cometido "rachadinha" (desvio de verba de gabinete) quando era deputado federal.

Sua posição foi acompanhada pelos ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Luis Roberto Barroso.

Após o voto de Barroso, que consolidou a maioria a favor da tese de Gilmar Mendes, o julgamento foi paralisado por um pedido de vista do ministro André Mendonça.

Além dele, ainda faltam votar os ministros Edson Fachin, Carmen Lúcia, Luiz Fux e Nunes Marques, mas ainda que todos votem contra, não seria suficiente para reverter o resultado.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil reconhecem que a alteração terá o efeito positivo de reduzir o "elevador processual", mas destacam também outro impacto: o aumento dos poderes da Corte sobre políticos, em um momento de tensão do Supremo com o Congresso e políticos bolsonaristas.

Um exemplo é o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, que enfrenta diversas investigações no gabinete do ministro Alexandre de Moraes por supostos crimes, como tentativa de golpe de Estado, venda de joias do acervo presidencial e fraude em cartões de vacinação.

Havia questionamentos, entre apoiadores do ex-presidente e parte do meio jurídico, se seria correto esses inquéritos serem mantidos no STF, após Bolsonaro perder seu cargo.

Com a mudança de regra, o STF consolidaria o entendimento de que essas investigações devem permanecer na Corte.

O constitucionalista Diego Werneck, professor do Insper, ressalta que o Supremo tem apresentado outros argumentos jurídicos para manter casos de pessoa sem foro em sua alçada.

É o caso, por exemplo, de desdobramentos do Inquérito das Fake News, em que o STF entendeu que poderia investigar pessoas comuns que atacassem a Corte e atentassem contra o Estado Democrático de Direito.

Mas o professor considera que a nova regra aprovada pela Corte para o foro especial reduz a possibilidade de questionamentos no caso de Bolsonaro e outros políticos que tenham perdido essa prerrogativa.

"Sem a nova regra, continuaria possível (manter investigações contra Bolsonaro no STF), mas seria muito mais discutível. Sem dúvida nenhuma, os caminhos seriam muito mais complicados. E agora fica mais evidente que não tem o que discutir", destaca.

Para Werneck, a mudança da regra é positiva ao combater o problema do vaivém de investigações e processos.

"Perde-se muito tempo, às vezes anos, na Justiça, só para se determinar quem vai julgar", observa.

No entanto, para além dessa motivação técnica, o professor acredita que o contexto político favoreceu a mudança de entendimento da Corte sobre o funcionamento do foro especial.

"Tem outro tipo de razões (para mudar a regra do foro) que são mais conjunturais. Eu acho que, nesse arco do governo Bolsonaro, o Supremo percebeu que é importante ter poder sobre os políticos. Percebeu que isso foi um ingrediente chave até para o esforço de resistência do Tribunal (a ataques) em vários momentos", avalia, ressalvando considerar negativa essa percepção de uma atuação política do Tribunal.

Divulgação STF
Gilmar Mendes liderou a mudança na regra do foro privilegiado

O advogado João Marcello Alves Costa, que estudou o funcionamento do foro especial em sua dissertação de mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), tem visão semelhante.

“Essa mudança vai ampliar o poder do Supremo sobre políticos, mas essa decisão não deixa de ter o caráter de aperfeiçoar um problema que eles mesmo criaram em 2018 (quando fixaram a atual regra do foro)”, analisa.

Costa considera, porém, que o “timing” (momento) da decisão é relevante.

“O ex-presidente (Jair Bolsonaro) está sendo acusado de muitos crimes que teriam sido cometidos enquanto Presidente da República. Esse timing do Supremo de decidir que a competência do Supremo seguirá (após o fim do mandato) não parece por acaso. É difícil você dizer que não estão vendo isso no horizonte deles”, ressalta.

Para ilustrar o impacto da mudança, Costa cita também o caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na sua leitura, o atual presidente não poderia ter sido investigado e julgado na primeira instância pela operação Lava Jato, se naquela época estivesse em vigor a nova regra do foro privilegiado.

O petista foi condenado, chegou a ficar preso 580 dias e foi impedido de disputar a eleição de 2022. Depois, o STF anulou as condenações, por considerar que os processos não deveriam ter tramitado na Justiça do Paraná e por avaliar que o então juiz Sergio Moro, hoje senador, foi parcial nas ações.

Impacto para caso Marielle é incerto

Apesar de a nova regra reduzir o vaivém processual, esse problema não deve ser totalmente eliminado com a mudança, dizem os especialistas.

Eles ressaltam que a regra criada em 2018 pelo STF estabeleceu que o foro privilegiado só seria aplicado quando o crime investigado tivesse relação com o cargo político. O objetivo foi tentar reduzir o número de processos criminais no Supremo.

O problema, ressaltam, é que o critério tem se mostrado muito subjetivo na sua aplicação.

"Acho que o Tribunal não tem dado sinais muito claros que possam ser usados por parlamentares para entender quando o Tribunal considera que (determinado crime) está ligado ao exercício da função ou não", nota Werneck.

Por causa dessa incerteza, não está claro ainda qual será o impacto da nova regra sobre outro caso que tem mobilizado a opinião pública: a investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em 2018.

No momento, a investigação tramita no STF porque um dos suspeitos de ter encomendado o crime é o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), que está preso preventivamente.

Na época do crime, ele também era vereador carioca. Segundo as investigações da Polícia Federal, a motivação para o assassinato estaria relacionada à atuação de Marielle contra grilagens de terra por milícias na zona oeste, reduto eleitoral de Brazão.

Por esse critério, nota Marcello Costa, o crime não teve relação com o mandato de deputado federal, e, por isso, não deveria estar no Supremo.

Por outro lado, há suspeitas de que Brazão atuou para atrapalhar as investigações, o que poderia indicar a continuidade da atuação criminosa durante o mandato na Câmara dos Deputados.

"Agora, o quanto que o cargo de deputado federal do Chiquinho Brasão permitiu e de fato foi determinante para embaraçar as investigações de um crime supostamente encomendado por ele como vereador não está claro", ressalta Costa, ao apontar a dificuldade em aplicar o critério do STF para o foro especial.

Foro privilegiado?

O foro por prerrogativa de função costuma ter uma conotação negativa no Brasil, associado à impunidade.

Os especialistas ouvidos dizem que a ideia do foro especial é oferecer uma dupla proteção ao processo, buscando tanto evitar que políticos sofram algum tipo de perseguição, como impedir que juízes de primeira instância fiquem sujeitos a algum tipo de pressão de poderosos.

A ideia é que em uma Corte Superior, em que os julgamentos ocorrem de forma colegiada, os magistrados estariam mais protegidos dessas cobranças.

Para Diego Werneck, o problema é que no Brasil o foro por prerrogativa de função é muito amplo, ou seja, abarca um número muito grande de autoridades.

No Supremo, são julgados todos os parlamentares federais, o presidente e o vice-presidente da República, ministros de Estado, integrantes dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e embaixadores.

Com isso, diz o professor do Insper, o STF acaba julgando muitos casos e passa a ser visto como um ator político, o que é negativo para a credibilidade do Tribunal.

"Quanto mais poder penal o Tribunal tiver sobre os políticos, mais cuidado deve ter ao usá-lo, porque se ele começa a usar muito, vai gerar retaliação dos políticos", analisa.

O advogado Marcello Costa questiona o uso do adjetivo "privilegiado" para se referir ao foro por prerrogativa de função. Ele lembra que o político julgado diretamente no STF fica sem outra instância para recorrer.

"Que privilégio é esse que reduz quatro instâncias a uma? Se você só tem uma instância e seu ministro-relator é o Alexandre de Moraes, por exemplo, um juiz duro, que privilégio é esse?", provoca.

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