ESPIONAGEM

Como a China espionou em 'larga escala' o governo britânico

Keir Starmer enfrenta questionamentos depois que o governo divulgou depoimentos de testemunhas de alto escalão da segurança.

O governo e o Ministério Público do Reino Unido buscam dar explicações depois que a testemunha-chave de uma investigação, que acabou arquivada, dizer que a China estava realizando "espionagem em larga escala" contra o Reino Unido.

A testemunha é o vice-conselheiro de segurança nacional, Matthew Collins, que declarou que a China "representa a maior ameaça estatal para a segurança econômica do país".

O Ministério Público decidiu arquivar o caso no mês passado após concluir não haver evidências de que a China era uma ameaça à segurança nacional.

Em uma rara declaração pública, Stephen Parkinson, chefe do Ministério Público, afirmou que o órgão tentou obter mais provas "ao longo de vários meses", mas que os testemunhos de Collins não tinham os requisitos mínimos necessários para o caso ser levado adiante.

Parkinson teria dito a parlamentares seniores na quarta-feira (15/10) que a evidência era "5%" aquém do que seria necessário para ter chances de obter uma condenação. Parte dos especialistas tem questionado, porém, se esses requisitos eram realmente necessários.

Além disso, os testemunhos de Collins, divulgados pelo governo na noite de quarta-feira (15/10), deixam claro que os chineses estavam realizando operações de espionagem contra o Reino Unido, dando início a questionamentos ao governo e ao Ministério Público sobre por que os processos não foram adiante.

O chefe do serviço secreto britânico, MI5, Ken McCallum, disse que agentes estatais chineses representam uma ameaça diária à segurança nacional do Reino Unido. Em discurso, ele afirmou que o MI5 interveio operacionalmente para interromper atividades chinesas de interesse da segurança nacional na semana passada, inclusive.

Ao abordar o arquivamento do caso de suposta espionagem em nome da China, McCallum disse que essa suposta atividade de espionagem foi interrompida pelo MI5 e que é "frustrante quando processos fracassam".

McCallum descreveu a testemunha-chave, Collins, como um "homem de alta integridade e um profissional de qualidade considerável".

Questionado se a China como um todo era uma ameaça à segurança nacional, McCallum disse: "A primeira pergunta é: os atores estatais chineses representam uma ameaça à segurança nacional do Reino Unido?" E completou: "A resposta é, claro, sim, todos os dias."

Opositores têm acusado o governo do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, de ter acobertado o caso. O governo negou a acusação e decidiu divulgar os testemunhos de Collins a fim de tentar esclarecer o motivo do arquivamento do caso contra dois supostos espiões.

Além disso, o governo tem repetido que a decisão de arquivar o caso foi do Ministério Público, sem a participação de qualquer ministro, membro ou conselheiro do governo.

O Parlamento já prepara uma investigação do caso. Segundo o parlamentar Matt Western (do Partido Trabalhista, o mesmo de Starmer), uma investigação formal será aberta pela Casa, pois ainda há "muitas perguntas a serem feitas".

Western, que lidera o Comitê Conjunto de Estratégia de Segurança Nacional, formado por parlamentares seniores, disse que o inquérito deve começar "o mais rápido possível". Ele pediu ao governo que garantisse franco acesso do comitê a ministros e funcionários públicos.

Políticos do Partido Conservador, que fazem parte da oposição, acusaram o governo de permitir que o caso fracassasse para evitar comprometer as relações econômicas com a China.

Para McCallum, do MI5, "quando se trata da China, o Reino Unido precisa se defender resolutamente contra ameaças e aproveitar as oportunidades que comprovadamente servem à nossa nação".

O governo liderado por Starmer negou a acusação de que abafou o caso e pôs a culpa do colapso da investigação no governo antecessor, do Partido Conservador, que estava no comando quando Collins fez seu primeiro testemunho formal, em dezembro de 2023.

Naquela ocasião, Collins descreveu suas acusações contra o ex-pesquisador parlamentar Christopher Cash, 20, e o acadêmico Christopher Berry, 33. A dupla foi acusada de colaborar com um líder do Partido Comunista Chinês que foi vice-diretor da Comissão Central de Segurança Nacional, presidida pelo presidente chinês, Xi Jinping.

Em uma mensagem, Cash teria dito a Berry: "Você está no terreno da espionagem agora".

Ambos os acusados negam qualquer irregularidade.

Reuters
O primeiro-ministro britânico Keir Starmer disse que vai publicar as declarações depois que Kemi Badenoch o acusou de encobrimento.

Em seu segundo testemunho, por escrito em fevereiro de 2025, depois que o Partido Trabalhista assumiu o poder, Collins disse que a espionagem da China ameaçava a "prosperidade econômica e a resiliência do Reino Unido". Além disso, apontou diversos modos pelos quais o governo britânico acredita ter sido hackeado por pessoas ligadas ao governo da China.

Em seu terceiro testemunho, em agosto de 2025, Collins reafirmou sua visão do desafio representado pela China ao Reino Unido. Ele também identificou atividades específicas de espionagem praticadas pelas China no Reino Unido.

No segundo e no terceiro depoimentos, ambos feitos já durante o governo do Partido Trabalhista, Collins deixa claro que o governo "está comprometido em buscar um relacionamento econômico positivo com a China".

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Lin Jian, disse: "A posição da China é clara: nós nos opomos firmemente às narrativas de espionagem e difamação da China".

Em debate na Câmara dos Comuns, o ex-secretário de segurança Tom Tugendhat, para quem Cash atuava como pesquisador parlamentar, perguntou ao governo: "De que diabo de lado vocês estão?"

E acrescentou: "Posso começar dizendo brevemente como isso parece. Minha casa foi invadida. Meus arquivos foram revirados. Alguém foi colocado em meu escritório por um Estado hostil, e os dois partidos estão brincando de política com isso".

Tugendhat acusou o governo de estar sendo obsessivo em seguir o devido processo, em vez de estar fazendo tudo que pode "para garantir que a investigação funcione".

Chris Ward, secretário parlamentar do governo de Starmer, foi incumbido do papel de defender o governo.

Ward afirmou que ele entende completamente como o caso afetou pessoalmente Tugendhat, mas a posição do governo era a de que não "haverá interferência com o Ministério Público no processo" e que "todos os esforços" serão feitos para manter o caso.

Em declaração divulgada na quarta-feira (15/10), Cash afirmou que ele foi posto numa "situação impossível" porque ele não terá "a luz do dia de um julgamento público para mostrar sua inocência".

E acrescentou: "As declarações foram tornadas públicas sem o contexto completo que teriam num julgamento".

Ainda que tenha negado anteriormente ter espionado para a China, Berry ainda não fez comentários desde o dia em que o caso foi encerrado.

Alicia Kearns, parlamentar do Partido Conservador, que também empregou Cash como pesquisador parlamentar, disse que o terceiro testemunho de Collins inclui termos sobre a China similares ao do programa de governo apresentado pelo Partido Trabalhista na eleição de 2024.

Tanto a declaração da testemunha, quanto o programa de governo incluem as sentenças "cooperaremos onde pudermos, competiremos onde for necessário, e desafiaremos onde for necessário".

"Há uma referência direta ao programa de governo do Partido Trabalhista", disse Kearns. "É bem difícil de acreditar que não houve interferência política e que um funcionário público teria sentido a necessidade de fazer isso".

Mas Kearns diz que não houve "discussão enganosa" sobre se a China era considerada uma ameaça à segurança nacional na época dos supostos crimes em 2023, quando o Partido Conservador ainda estava no poder. "Na minha visão, o Ministério Público deveria ter prosseguido com isso", disse Kearns.

Ela acrescenta: "A jurisprudência mostra que cabe ao júri decidir se a China é ou não uma ameaça ao país".

A BBC News apurou que Collins presumiu ter dado evidências suficientes para a investigação do Ministério Público ter prosseguimento, ao prestar seu terceiro testemunho em agosto de 2025.

Ainda segundo apuração da BBC, uma fonte do governo faz menção a comentários feitos por Collins em que ele descreve "a crescente ameaça de espionagem chinesa ao Reino Unido" como um exemplo de porque ele presumiu ter dito o suficiente para atender os requisitos do Ministério Público para levar o caso adiante.

Há informações também de que o Ministério Público entrou em contato com Collins após seu primeiro testemunho para solicitar esclarecimentos sobre as ameaças representadas pela China, mas o órgão não foi claro o suficiente para explicar o que seria necessário para Collins apresentar que atendesse aos requisitos do Ministério Público para levar o caso adiante.

Cash e Berry foram acusados sob o Ato de Segredos Oficiais em abril de 2024, quando o Partido Conservador estava no poder.

Eles foram acusados de obter e repassar informações prejudiciais à segurança e aos interesses de Estado durante dezembro de 2021 e fevereiro de 2023.

O diretor do Ministério Público disse que o caso foi arquivado porque não dava para obter evidências do governo considerar a China uma ameaça à segurança nacional.

Para ele, ainda que houvessem evidências suficientes quando as acusações foram originalmente apresentadas contra a dupla, um precedente criado por um outro caso de espionagem no início deste ano significava que a China precisaria ser considerada uma "ameaça à segurança nacional" quando as acusações foram feitas.

O porta-voz para relações exteriores do Partido Liberal Democrata, Calum Miller, afirmou que os testemunhos divulgados levantam "ainda mais questões não respondidas". "Nós claramente precisamos de um inquérito público para chegar ao fundo desse completo fiasco."

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