A canção Yesterday, dos Beatles, foi escrita no que psicólogos chamam de "estado hipnagógico". Essa é uma zona cinzenta entre o sono e a vigília, quando ficamos meio sonolentos em um estado semiconsciente, experimentando imagens e sons mentais vívidos.
Ao acordar em uma manhã do início de 1965, Paul McCartney percebeu uma melodia longa e complexa tocando em sua cabeça. Saltou da cama, sentou-se ao piano e começou a tocá-la.
Ele rapidamente encontrou os acordes que acompanhavam a melodia e rascunhou algumas frases de acompanhamento (como as chamam os compositores, antes de escrever a letra propriamente dita) que se encaixavam com a música.
Custando a acreditar que um som tão bonito poderia surgir espontaneamente, McCartney suspeitou que estivesse plagiando inconscientemente outra composição.
"Durante aproximadamente um mês, procurei pessoas do meio musical e perguntei se já tinham a ouvido antes... Pensei que, se ninguém a reivindicasse depois de algumas semanas, poderia ficar com ela", relembrou. Mas era mesmo original.
Muitas grandes descobertas e invenções surgiram durante o estado hipnagógico.
O físico Niels Bohr ganhou o Prêmio Nobel porque, estando semiconsciente, sonhou que via o núcleo do átomo, com elétrons girando ao redor, tal como o sistema solar com o Sol e os planetas, e assim "descobriu" a estrutura atômica.
O ponto ótimo
Pesquisas demonstraram que o estado hipnagógico é um "ponto ótimo" para a criatividade. Por exemplo, em um estudo de 2021, participantes em estado hipnagógico tiveram três vezes mais chances de descobrir a "regra oculta" capaz de solucionar um problema matemático.
Os psicólogos associam a criatividade a qualidades como abertura à experiência e flexibilidade cognitiva.
Outros sugerem que a criatividade surge da coordenação entre a rede de controle cognitivo do cérebro (responsável pelo planejamento e resolução de problemas) e a rede do modo padrão (associada ao devaneio e à divagação mental).
No entanto, na minha opinião, uma das teorias mais importantes sobre a criatividade é também uma das mais antigas, proposta pelo psicólogo britânico Frederic Myers, em 1881. Segundo Myers, ideias e percepções surgem como uma súbita "onda" da mente subliminar.
Para Myers, nossa mente consciente é apenas um pequeno segmento de nossa mente como um todo, incluindo não apenas o que Sigmund Freud chamou de inconsciente, mas também níveis de consciência mais amplos e elevados. As ideias podem ser gestadas inconscientemente por um longo tempo antes de emergirem à consciência.
É por isso que muitas vezes sentimos que as ideias vêm de fora da mente, como se nos fossem dadas. Elas podem vir de além da nossa mente consciente.
A importância do relaxamento
O estado hipnagógico é tão criativo porque, enquanto oscilamos entre o sono e a vigília, a mente consciente está apenas ativa.
Por um breve período, nossos limites mentais ficam mais permeáveis, e percepções e ideias criativas podem fluir da mente subconsciente.
Em sentido mais geral, é por isso que a criatividade é frequentemente associada ao relaxamento e ao ócio. Quando relaxamos, nossa mente consciente tende a ficar menos ativa. Muitas vezes, quando estamos ocupados, nossa mente está repleta de pensamentos incessantes, sem espaço para que ideias criativas fluam.
É por isso também que a meditação está fortemente ligada à criatividade.
Pesquisas mostram que a meditação promove qualidades criativas gerais, como abertura à experiência e flexibilidade cognitiva.
Mas talvez ainda mais importante, a meditação silencia e suaviza a mente consciente, nos tornando mais suscetíveis a receber inspiração de fora dela.
Como destaco em meu livro The Leap (O Salto, em tradução livre), é por isso que existe uma forte conexão entre o despertar espiritual e a criatividade.
Alimentando o estado hipnagógico
Pesquisas indicam que cerca de 80% das pessoas já experimentaram o estado hipnagógico e que aproximadamente um quarto da população vivencia com regularidade. É ligeiramente mais comum em mulheres do que em homens.
Esse estado tende a ocorrer no início do sono, mas também pode surgir ao despertar ou ao longo do dia, quando sentimos sono e a consciência começa a se apagar.
Podemos usar o estado hipnagógico para potencializar nossa criatividade? Certamente é possível permanecer nele, como muitos sabem, especialmente nas noites de domingo.
No entanto, um dos desafios é capturar as ideias que surgem. Nesse torpor, pode faltar o impulso de registrá-las. É tentador pensar, antes de voltarmos a dormir: "Essa ideia é tão boa que vou lembrar com certeza." Mas, ao acordar algum tempo depois, a ideia desapareceu.
No entanto, com treinamento mental, não há razão para que não possamos criar o hábito de registrar nossas ideias hipnagógicas.
O ideal é ter caneta e papel na mesa de cabeceira. Ou, numa versão mais moderna, deixar o celular ao lado da cama com o aplicativo de gravação aberto.
Na verdade, essa é uma prática que Paul McCartney sempre adotou. Ele chegou a treinar para escrever no escuro com esse objetivo.
Também é possível usar a técnica do "cochilo consciente" para gerar ideias. Sempre que o grande inventor Thomas Edison ficava travado em uma solução ou em uma nova ideia, ele entrava em um estado semiconsciente enquanto segurava uma bola de metal.
Quando adormecia, a bola caía no chão e o acordava e, muitas vezes, ele percebia que uma nova perspectiva havia surgido.
De forma mais geral, deveríamos usar a ociosidade como aliada da criatividade.
Não pense que tirar uma soneca ou relaxar é perda de tempo. Longe de ser improdutivo, isso pode levar às ideias e percepções mais inspiradoras.
Este artigo foi publicado em inglês no site The Conversation. Você pode ler ele aqui.
Steve Taylor é professor de Psicologia da Universidade Leeds Beckett (Reino Unido) e autor de livros sobre psicologia e espiritualidade.
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