O fim do auxílio emergencial, benefício que garantiu em nove meses do ano passado o mesmo que o Bolsa Família distribuiu em nove anos, pode ter um impacto significativo no aumento da taxa da pobreza. Só não será maior, segundo o economista Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), porque a captação da poupança em 2020 aumentou 10,4 vezes em relação ao mesmo período de 2019. “Isso poderá ajudar a fazer uma travessia mais tranquila com o fim do auxílio emergencial”, diz. Alguns especialistas, no entanto, discordam e sustentam que o dinheiro dos beneficiários foi gasto no ano passado e quem economizou, de fato, foram as camadas mais favorecidas da população.
Segundo Neri, a redução do auxílio emergencial à metade foi responsável por aumentar a taxa de pobreza do país. “O índice estava em 10,9% em 2019, caiu a 4,5% em agosto, com o benefício integral (R$ 600 mensais), porém, em novembro (quando o valor foi reduzido a R$ 300), subiu para 8,5%. Pela nossa projeção, a taxa de pobreza poderia chegar a 12,8% com o fim do auxílio emergencial”, calcula. Em 2021, os mais vulneráveis voltaram a receber apenas o Bolsa Família.
“A taxa de pobreza estimada em 12,8% este ano poderá ser menor, por conta do colchão de poupança que foi feito no ano passado. Claro que não sabemos quem, exatamente, pôde poupar no ano passado, se foram os mais pobres, até porque 68 milhões de brasileiros foram beneficiados diretamente, quase um terço da população. Mas a evidência é que os brasileiros pouparam 10,4 vezes mais do que em 2019”, ressalta Neri. “A caderneta é o ativo mais popular entre os mais pobres. O próprio auxílio emergencial foi pago via poupança digital. O saldo líquido vai ajudar a economia a girar sem o auxílio”, opina.
No ano passado, os brasileiros foram cautelosos e o saldo líquido da poupança foi de R$ 166,3 bilhões, segundo o Banco Central. O resultado é fruto de aportes de R$ 3,1 trilhões, menos saques de R$ 2,9 trilhões. Como a rentabilidade da caderneta somou R$ 23,8 bilhões no período, 2020 encerrou com volume total de R$ 1,036 trilhão. O BC chamou o movimento de “poupança precaucional” diante das incertezas da pandemia.
No entender de Paulo Duarte, economista-chefe da Valor Investimentos, a captação recorde não foi exclusividade da poupança. “O governo despejou uma quantidade imensa de dinheiro na economia, via crédito, via benefício e via postergação de impostos. Boa parte desse dinheiro foi para o mercado financeiro, por conta do medo de investir. Então foi para a poupança, para a Bolsa de Valores, para os fundos imobiliários”, explica. Para Duarte, a classe que recebeu o auxílio emergencial o utilizou no ano passado. “Isso ficou claro nos dados do varejo, dos supermercados, setores que tiveram uma recuperação rápida. O aumento da poupança foi muito mais das classes A e B do que necessariamente da camada mais frágil da população”, defende.
Na opinião do CEO da QuiteJá, Luiz Henrique Garcia, o aumento do saldo da poupança é positivo, porque mostra uma mudança de pensamento em relação à educação financeira. “Se o brasileiro está aumentando as reservas, isso é uma tendência de se proteger em situações sazonais como a que a gente vem atravessando com a pandemia ou em cenários de desemprego e redução de renda”, avalia.
Cristiane Quartarolli, economista do Banco Ourinvest, disse que o auxílio emergencial contribuiu para a melhora na renda do povo e para segurar a taxa de desemprego. “O desemprego ficou em 14%, mas poderia ter superado 20%. Não foi maior porque as pessoas que receberam o auxílio deixaram de procurar emprego e saíram da estatística. Agora, quem pôde economizar foram aqueles que ficaram confinados em casa e, por exemplo, não tiraram férias, não viajaram e puderam poupar”, analisa.
Incerteza
Haroldo Vale Mota, professor de finanças da Fundação Dom Cabral, explica que a pandemia criou uma situação em que, diante do desemprego crescente e da incerteza de renda, muitas pessoas se viram obrigadas a economizar. “O consumo de serviços diminuiu na pandemia, as pessoas ficaram reclusas em casa. Então, tiveram a oportunidade de poupar mais. Como a caderneta de poupança é simples de aplicar, foi possível ver uma alta no volume de depósitos. Muitas pessoas têm tomado uma posição mais conservadora.”
Para Thatiane Pereira, de 27 anos, poupar durante a pandemia tem sido uma tarefa inviável. A jovem, que trabalha como auxiliar administrativo e mora com a mãe no Recanto das Emas, região administrativa do Distrito Federal, conseguiu manter o emprego durante a pandemia em regime de home office. “A pandemia não nos afetou tanto. Eu consegui trabalhar mesmo de casa e, graças a Deus, minha empresa não reduziu meu salário. Minha mãe, que é empregada doméstica com carteira assinada, também conseguiu manter o salário. Ela trabalha há mais de 10 anos para a mesma patroa”, conta.
Ela revela que não precisaram procurar trabalho e conseguiram manter as contas em dia mesmo sem receber o auxílio emergencial, mas familiares próximos tiveram problemas. “Tentamos economizar bastante e deu tudo certo. Mas tenho uma tia que é diarista. Foi um período difícil para ela conseguir trabalhar”, ressalta. Thatiane revela também que pretende começar a poupar em breve, reduzindo os gastos obrigatórios mensais.
“Pretendo poupar dinheiro e fazer uma reserva para poder tirar minha Carteira Nacional de Habilitação e comprar um carro. Isso ainda não foi possível para mim, porque não tem sobrado dinheiro, com contas, obras em casa, aluguel e o consumo de alimentos. Mas estou me organizando para que comece a sobrar a partir de março”, comenta.
Tábua de salvação
Captação da poupança foi recorde em 2020 e pode minimizar fim de auxílio
Saldo líquido: R$ 166,3 bilhões
Aportes: R$ 3,1 trilhões
Saques: R$ 2,9 trilhões
Rentabilidade: R$ 23,8 bilhões
Volume total: R$ 1,036 trilhão
Pobreza
Taxa recuou com auxílio, subiu com benefício menor e deve disparar em 2021
Em 2019: 10,9%
Agosto de 2020: 4,5%
Novembro de 2020: 8,5%
Projeção para 2021: 12,8%
Fontes: Marcelo Neri e Banco Central
* Estagiário sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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