A formação do monoteísmo judaico é progressiva e dialética. Com Miles, têm-se a visão de Javé como que o amálgama de vários deuses do panteão semítico, notadamente das deidades cananitas e babilônias mais antigas: El, o Deus Supremo; Baal (o Deus da guerra, do vulcão e da fertilidade); Aserá, a deusa da Sabedoria; Tiamat, a deidade maligna, serpentina e assim por diante. O processo descrito por Miles — de resto estudado por outros historiadores da Bíblia judaica — tem validade. Entretanto, outros fatores devem ser considerados. Não é desprezível a contribuição egípcia monoteísta de Atom, única, que foi difundida a grupos de israelitas que estiveram no Sinai, trabalhando, uns em obras civis e militares no Egito e, também, pastoreando em Mediã, sob a influência de Jetro e de seu genro Osarip ou Moisés. Importam as ideias de Zoroastro da velha Pérsia, que conferia ao opositor do Deus bom, único e eterno, um adversário celeste que representava um princípio de distorção e destruição da ordem cósmica e, igualmente, do mundo dos homens. Uma espécie de deidade aparentada a Satã no judaísmo (a sua presença no Livro de Jó é inelutável).
A espiritualidade budista, xintoísta, taoísta, além do himalia, só para exemplificar, não se incomoda com os deuses alheios e é extremamente tolerante. Com o monoteísmo judaico, por razões de Estado e de um nacionalismo até certo ponto desesperado e xenófobo, havia uma extrema necessidade de afirmar o Deus de Israel em confronto quase bélico contra os outros deuses cananeus. O monoteísmo aí é militante e intolerante porque, se assim não fosse, logo se diluiria espiritualmente. Javé é violento, a Torá é violenta, os profetas são violentos. Isto não exclui da espiritualidade judaica a compaixão, o amor, a retidão, o anseio de justiça e a santidade. Mas, estas excelsas qualidades aparecem mais quando os judeus deixaram de ser um Estado para ser apenas um povo (mesclado, diga-se, logo). Nos tempos míticos, Javé é poder, glória, violência e intolerância.
Karen Armstrong (Armstrong, Karen. Uma História de Deus. Editora Schwarcz Ltda, São Paulo, 2008. Do original A history of God — The 4000-year quest of Judaism, Cristianity and Islam. Tradução de Marcos Santarrita) discorre sobre esse processo dialético com extrema erudição e simplicidade e traceja linhas para bem compreendermos o Salmo 82, o ferrolho que desvenda o sincretismo judaico:
“(...) Parece que as sociedades mais primitivas às vezes tinham as mulheres em mais alta conta que os homens. O prestígio das grandes deusas na religião tradicional reflete a veneração do feminino. Com o surgimento das cidades, porém, qualidades mais masculinas, como destreza marcial e força física, sobrepuseram-se às características femininas. Daí em diante, as mulheres foram marginalizadas e se tornaram cidadãs de segunda classe nas novas civilizações do oikumene. Sua posição era particularmente inferior na Grécia, por exemplo — um fato que os ocidentais deviam lembrar quando clamam contra as atitudes patriarcais do Oriente. O ideal democrático não se estendia às atenienses, que viviam reclusas e eram desprezadas como seres inferiores. A sociedade israelita também assumia um tom mais masculino. Nos primeiros tempos, as mulheres eram vigorosas e claramente se consideravam iguais aos maridos. Algumas, como Débora, comandaram exércitos em combate. Os israelitas continuavam festejando mulheres heróicas como Judite e Ester, mas, depois que Javé venceu as outras divindades de Canaã e do Oriente Médio e se tornou o único Deus, os homens prevaleceram em sua religião. O culto das deusas desapareceu, sinalizando uma transformação cultural característica do mundo recém-civilizado.
Veremos que a vitória de Javé foi difícil. Envolveu tensão, violência e confronto, e sugere que a nova religião do Deus Único não se consolidou com tanta facilidade entre os israelitas quanto o budismo e o taoísmo entre os povos do continente. Javé não parecia capaz de transcender as velhas divindades de maneira natural e pacífica. Teve de expulsá-las à força. Assim, no Salmo 82, nós o vemos pleiteando a liderança da Assembleia Divina, que desempenhara um papel tão importante no mito babilônico a assírio e cananeu:
Javé toma seu lugar no Conselho de El para proferir julgamentos entre os deuses. “Não mais arremedeis a justiça. Não mais favoreçais os maus! Fazei justiça ao fraco e ao órfão, sede justos com o aflito e o desvalido, salvai o fraco e o necessitado, tirai-os das garras dos maus! Ignorantes e insensíveis, eles prosseguem cegamente, solapando os fundamentos da sociedade humana. Eu disse: ‘Vós também sois deuses, filhos de El Elyon, todos vós; no entanto, morrereis como homens; como homem, deuses, caireis’”.
Com isso, estamos dando férias a comentários políticos e inaugurando debates sociológicos sobre “religiões reveladas” por interlocutores privilegiados (Moisés e Maomé).
*Advogado
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