A democratização dos sistemas alimentares

Cresce, a cada dia, a preocupação com a excessiva concentração de poder em segmento tão essencial para o bem-estar da humanidade, já que um número relativamente limitado de operadores ganhou capacidade de influenciar praticamente todas as etapas críticas dos sistemas alimentares

Maurício Antônio Lopes*
postado em 09/08/2020 11:29 / atualizado em 09/08/2020 11:38
 (crédito: Ascom/Emater-DF)
(crédito: Ascom/Emater-DF)

Um dos grandes feitos da humanidade nos últimos 13 mil anos foi o desenvolvimento da agricultura com nossos ancestrais aprendendo a produzir alimentos de forma sistemática. O avanço pôs fim a um período de quase 200 mil anos em que os humanos dependiam da caça e da coleta do que a natureza tinha a oferecer.

Embora a agricultura tenha demandado mais trabalho do que a caça e a coleta, a capacidade de produzir calorias de forma abundante e regular prendeu as pessoas à terra, deu origem às cidades e transformou radicalmente as sociedades humanas, tendo levado ao aumento da população global de 4 milhões para 7 bilhões desde 10 mil anos a.C. A agricultura foi, portanto, a força motriz por trás do crescimento das civilizações.

Os últimos 50 anos foram especialmente marcantes para a agricultura e os sistemas alimentares, impactados pelo crescimento econômico, pela urbanização acelerada, por avanços em tecnologias de produção, processamento e armazenamento, que levaram ao surgimento de uma indústria alimentar, que, por sua vez, mudou a maneira de acessar e consumir alimentos ao redor do mundo.

Acordos comerciais patrocinados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) a partir de 1995 fortaleceram esse movimento, levando à abertura e à integração dos mercados, reduzindo tarifas e barreiras não tarifárias às importações e permitindo a rápida expansão de potente sistema alimentar industrial, operando em âmbito global.

A interação entre comércio internacional e agricultura foi capaz de conformar complexas cadeias de suprimentos operadas por grandes corporações que ganharam enorme capacidade de influenciar a dinâmica dos sistemas alimentares — desde definições do que, onde e quando produzir até decisões que impactam o processamento, a distribuição e o consumo de alimentos.

Grande benefício das cadeias de valor globais está no fato de os países poderem se especializar no que é sua vocação natural, fornecendo pelo menor preço o que muitos precisam, mas não podem produzir com igual eficiência. Ao conectarem produtores e compradores em todos os cantos do planeta via sistemas logísticos sofisticados, os modelos de comércio dão aos consumidores, em qualquer lugar, acesso a alimentos a preços menores.

No entanto, cresce, a cada dia, a preocupação com a excessiva concentração de poder em segmento tão essencial para o bem-estar da humanidade, já que um número relativamente limitado de operadores ganhou capacidade de influenciar praticamente todas as etapas críticas dos sistemas alimentares — desde a produção até o consumo. E é crescente o número de consumidores que se sentem cada vez mais privados da autonomia de escolher os alimentos que desejam consumir ou de fazer escolhas mais saudáveis.

Essa é uma preocupação reforçada pelo Relatório Global de Nutrição 2020, que indica uma em cada três pessoas no mundo com sobrepeso ou obesidade. Há, também, número crescente de países experimentando um duplo fardo: a desnutrição coexistindo com o sobrepeso, a obesidade e outras doenças que comprometem a saúde imunológica. Hoje, pessoas imunodeprimidas e desnutridas sofrem desproporcionalmente as consequências letais da pandemia de covid-19.

O fato é que cidadãos cada vez mais informados e conscientes se dão conta de que o sistema alimentar está excessivamente centrado no lucro e precisa ser reinventado para cumprir a missão de fornecer alimentos acessíveis, seguros, nutritivos — e aceitáveis — para todos. Movimento que certamente crescerá na conjunção das crises sanitária e econômica — impostas pela pandemia — acrescidas das preocupações com a mudança climática, todas somando-se para colocar em xeque a confiabilidade e o desempenho dos sistemas alimentares. Crises que fortalecem a percepção de que os consumidores é que devem ganhar o centro do sistema alimentar, o que demandará alteração na concentração de poder, com ampliação da autonomia dos indivíduos na relação com os alimentos.

O Green New Deal, ou retomada verde — um grande acordo social para reinvenção das práticas de criação, distribuição e consumo de riqueza —, é, cada vez mais, reconhecido como saída para a superação dos infortúnios da pandemia. O movimento nasce da mobilização de governantes, líderes empresariais, investidores e formadores de opinião ao redor do globo.

Em destaque está a busca por inovações que viabilizem sistemas alimentares mais resilientes, assegurando aos cidadãos liberdade de escolha para acesso a alimentos seguros, na quantidade e qualidade necessárias para atravessar períodos de crises e incertezas.

Movimentos assim tenderão a conformar cadeias de valor mais diversificadas e resilientes, capazes de atender às expectativas de consumidores exigentes, garantindo, ainda, redundância e funcionamento, mesmo em caso de riscos inesperados. De maneira interligada a essa tendência, legisladores e tomadores de decisão certamente estarão mais atentos aos códigos de conduta relacionados à saúde dos consumidores, à liberdade de escolha e de acesso a dietas saudáveis, ao tratamento justo aos trabalhadores e aos cuidados com o meio ambiente.

A busca por diversidade e resiliência deverá, também, fortalecer a produção local, que amplia a autonomia dos consumidores no acesso ao alimento e viabiliza o abastecimento em situações de crise, além de contribuir para a expansão de oportunidades econômicas e superação de desigualdades sociais e exclusão.

*Pesquisador da Embrapa

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