A solidão do poderoso no espelho

''Estamos sob a tutela de um governo federal que parece insensível à grave calamidade pública, como se inserido em uma bolha alienante, em uma realidade paralela que ignora a dolorosa e inaceitável estatística que ostentamos de mortos e infectados''

VALDIR DE AQUINO XIMENES
postado em 18/08/2020 04:00

Respiramos tempos sombrios e pestilentos no mundo inteiro, fato refletido nas mudanças no vocabulário da nossa comunicação diária, permeada agora por termos como pandemia, coronavírus, número de óbitos e infectados, UTIs, respiradores, teste rápido, máscaras, álcool em gel, quarentena, isolamento social, cloroquina, desemprego, falência, ensino a distância, ansiedade, angústia, depressão.

No nosso país, este momento algo distópico se reveste de mais dramaticidade, pois agregado aos fatores sanitários e econômicos, que não comportam dissociação no caso, há o componente político a interferir negativamente na condução da pandemia, tornando a luz no fim do túnel para nós mais distante dada a complexidade da situação.

Sou médico e escritor residente em Brasília. É nessa dupla condição que expresso o meu repúdio e preocupação com os rumos não só da saúde e da cultura no país, áreas sempre descuidadas e maltratadas, sobretudo nos dias que correm, mas também de muitos outros setores, na expectativa de que mais colegas médicos e escritores façam o mesmo, individualmente ou de forma coletiva, configurando, assim, grande onda de indignação nacional.

Estamos sob a tutela de um governo federal que parece insensível à grave calamidade pública, como se inserido em uma bolha alienante, em uma realidade paralela que ignora a dolorosa e inaceitável estatística que ostentamos de mortos e infectados, e como se o nosso Ministério da Saúde, em sua prática disfuncional, estivesse também incluído na lista das atividades não essenciais.

Concomitante a esse cenário lúgubre, convivemos com um ambiente ideológico tóxico, marcado por acentuada polarização e pensamentos binários e excludentes, guiados por ódio, raiva, cancelamento de pessoas, que não admite o contraditório, como se, entre 8 ou 80, direita e esquerda, não existisse vida inteligente.

Há também negacionismo da ciência primário e constrangedor, abarcando diversos temas, da astronomia à farmacologia, além do menosprezo explícito pela área das humanidades, tida como pouco importante para o nosso desenvolvimento econômico pelas nossas autoridades. Isso gera, em auspiciosos tempos de 5G, desestímulo à pesquisa, leitura, conhecimento, às inovações tecnológicas, além de empobrecimento do debate filosófico e de políticas públicas mais produtivas. Ficamos, assim, subjugados a um ambiente intelectual pouco arejado e obscurantista, ameaçando solapar conquistas e valores sagrados da civilização humana.

Conjugado a isso, temos a área cultural, disposta em plano de prioridades bem secundário sob as hostes bolsonaristas, sofrendo revezes contínuos, que passam pela perda do status ministerial e redução ainda maior de verbas, por sucessivos gestores incompetentes e pouco comprometidos com as carências do setor, pelo desmonte e sucateamento de autarquias e fundações, e por viés ideológico que contamina toda a sua atuação, por princípio aberta, multifacetada, não pautada por discurso pouco receptivo às minorias e diversidades.

O mesmo cenário de terra arrasada é visto na educação, cujo maior deficit é o gerencial, fato que tomou proporções alarmantes, quando não anedóticas. A se destacar ainda a falta de líderes com perfil de estadistas, esboços de ameaça à democracia, justiça politizada e política judicializada, conflitos entre os poderes, instituições desrespeitadas, monitoramento subterrâneo de cidadãos, liberdade de expressão desvirtuada, Amazônia vilipendiada, multilateralismo na diplomacia desprestigiado.

Finalizo com a teimosa esperança de que, seguindo a teoria da destruição criativa, possamos sair da pandemia com nova consciência social, com elites mais solidárias, a serviço de uma nação ressignificada, menos corrupta, desigual e injusta, mais plural e inclusiva.

E, se não for abusar do direito de sermos otimistas, que nossos governantes, capitaneados pelo mais poderoso deles, no recolhimento silencioso e solitário das madrugadas nas casas e palácios e diante do implacável espelho, possam se defrontar com a consciência e demônios interiores. E, desse processo catártico de conversa íntima e autocrítica, emerjam melhores homens públicos e seres humanos, irmanados pelos objetivos comuns de permanente defesa da democracia e de oferta de mais empatia e respeito pelos comandados.


* Médico pediatra e psiquiatra infanto-juvenil, é escritor, membro da Academia Brasiliense de Letras e da Associação Nacional dos Escritores

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