O vírus tributário pode matar os hospitais

''Gerir e manter um hospital no Brasil é desafio constante, que se inicia com a transposição de complexo emaranhado composto por autorizações, licenças, alvarás, comissões obrigatórias e muito mais''

Francisco Balestrin
postado em 20/08/2020 04:00

Historicamente, os hospitais surgiram como lugares para acolhida de doentes e peregrinos durante a Idade Média (de 476 a 1453 D.C). Assim, quando a primeira das grandes pandemias surgiu na Europa do século 14, os hospitais já cumpriam o papel de cuidar de pessoas. Foi assim com a peste bubônica, que reduziu a população da Europa de 450 milhões para 350 milhões de habitantes; com a pandemia de varíola, que atormentou a humanidade por 3 mil anos; da cólera, no início do século 19; da gripe espanhola, que, de 1918 a 1920, acometeu mais de 500 milhões de pessoas e causou cerca de 50 milhões de mortes; e com a primeira pandemia do século 21, a da gripe suína, causada pelo vírus H1N1. Hoje, o mundo luta contra a covid-19, que já registra mais de 18 milhões de casos e mais de 700 mil mortos. Em todos os momentos de tragédia sanitária, os hospitais sempre se fizeram presentes e imprescindíveis.

Hoje, infelizmente, os hospitais brasileiros se veem diante de ameaça mais desafiadora quando comparada a qualquer pandemia da história, risco que pode fechar muitas instituições: a proposta de reforma tributária apresentada pela equipe econômica do governo que tramita no Congresso Nacional. A unificação do PIS e Cofins, impostos federais que incidem diretamente sobre o faturamento das empresas, passariam a ser denominados Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que teria uma alíquota única de 12%. Atualmente, os serviços de saúde recolhem pela alíquota de 3,65% (0,65 de PIS e 3% de Cofins).
Estudo realizado pelo SindHosp (Sindicato de Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo) constata que a nova alíquota de 12% pode representar aumento de aproximadamente 70% da carga tributária para hospitais, clínicas e laboratórios. Além disso, ao propor a saída de um sistema cumulativo para um não cumulativo, insumos adquiridos pelas empresas nas fases de produção de um bem ou serviço gerariam créditos tributários que seriam descontados dessa alíquota majorada. Acontece que, nos serviços de saúde, o custo mais relevante é com recursos humanos, representando aproximadamente 45% das despesas totais, que, por não serem consideradas entradas tributadas, não geram créditos tributários.

Não há dúvida de que reduzir a incidência em cascata de tributos é importante. O Brasil precisa não só de redução de impostos, mas, também, de impostos melhores, que provoquem menos distorções às atividades econômicas e estimulem a criação de empregos e investimentos. Porém, a atual proposta caminha em sentido contrário. É inconcebível que, em um momento em que milhares de empresas encerram as atividades em razão dos impactos da pandemia de covid-19 e milhões de brasileiros perdem emprego e renda, o governo apresente proposta de reforma tributária que pune quem gera muitos postos de trabalho, como os hospitais.

A proposta traz outro agravante: aumenta a burocracia, pois exige que instituições montem internamente verdadeiras estruturas de gestão de créditos tributários, onerando custos. O acréscimo teria reflexo imediato nos custos dos serviços, que seriam inevitavelmente repassados aos consumidores, já impactados com reajustes anuais nos planos de saúde acima da inflação. A burocracia onera muito todas as atividades econômicas, mas parece não conhecer limites.

Gerir e manter um hospital no Brasil é desafio constante, que se inicia com a transposição de complexo emaranhado composto por autorizações, licenças, alvarás, comissões obrigatórias e muito mais. Para poder entrar em funcionamento, é necessário aproximadamente 50 certidões, concedidas por mais de 20 órgãos públicos diferentes. Além disso, a rigidez da legislação trabalhista continua a afetar fortemente a atividade hospitalar, que é dependente de mão de obra especializada.

O governo acena que, após a primeira fase da reforma, teríamos uma desoneração da folha de pagamento, que compensaria essas majorações para as atividades que mais empregam. Infelizmente, não há como acreditar em promessas de futuro próximo. O rei Salomão, quando posto à frente de um julgamento sobre a maternidade de determinada criança, decidiu parti-la ao meio e entregar metade para cada mulher. Uma delas aceitou a sentença enquanto a outra pediu que entregassem a criança inteira à primeira. Dessa forma, o sábio monarca identificou a mãe verdadeira e fez justiça, entregando-lhe o filho.

O Salomão nacional, porém, é menos sábio. Optou por distribuir pedaços aos poucos, como também punir os que, nos últimos meses, batalharam arduamente pela saúde dos brasileiros. 


* Médico, gestor de saúde e presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SindHosp) 

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