O apetite do dragão

EUCLIDES RIBEIRO S. JUNIOR
postado em 26/08/2020 23:39

Vem da cidade de Carlinda, norte de Mato Grosso, exemplo do cenário de dominação do poderio chinês no agronegócio brasileiro. Um grande canteiro de obras destaca-se na paisagem, de longe a maior construção que a cidade de 10 mil habitantes já abrigou. “Aqui vamos construir uma nova história”, diz uma placa da Cofco Internacional, responsável pela obra. No local, funcionará mais um armazém que vai se somar aos 19 que a empresa chinesa possui no país.

Ela é uma das principais — entre muitas — chinesas que se estabeleceram no setor do agronegócio brasileiro nos últimos anos. O grupo Dakang, originário da província de Hunan, é mais um que se consolidou por aqui. Outro exemplo, a chinesa Chemchina, adquiriu a produtora de sementes Syngenta, com uma unidade em Lucas do Rio Verde (MT). Há, ainda, projetos como a construção de uma fábrica de drones para agricultura em Cuiabá pela empresa Zhurai e de um centro de pesquisas tecnológicas voltado à agricultura em Sinop (MT), pelo Grupo Sino.

Por quase dois séculos, os fluxos do comércio agrícola mundial estiveram nas mãos de quatro gigantes da produção e processamento de alimentos – Archer-Daniels-Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, também conhecidas em conjunto como ABCDs. No decorrer das décadas, as gigantes do agronegócio construíram seus impérios centenários assumindo posição hegemônica na propriedade de transportadoras, silos, portos e relacionamento diversificado com produtores agrícolas.

O reinado da sigla ABCD se viu desafiado pela filha novata de uma velha senhora, que, agora, coloca seu forcado para trabalhar mundo afora: a chinesa Cofco Internacional foi criada como desdobramento para o comércio exterior da gigante estatal Cofco, conglomerado de processamento de alimentos.

Com investimentos diretos, hoje, em 35 países, a jovem trading agrícola, mesmo completando apenas seis anos de existência, está caminhando para se tornar líder mundial na cadeia de abastecimento de grãos, oleaginosas e açúcar. Em poucos anos, ela passou a competir no Brasil de igual para igual com as ABCDs e já se posiciona como a quarta maior do país.

Isso tudo só tende a somar o que chamamos de “efeito China”, que tem a ver tanto com as causas provenientes das transformações do país asiático quanto com as especificidades dos governos em que os efeitos incidem. Quanto mais espaço esses investidores internacionais encontram para crescer, maiores ficam os tentáculos financeiros daquele país. E o Brasil está como um cordeirinho rumando inocente para o abate.

É inegável o poder político que essas empresas representam, e sua capacidade de alterar normas fitossanitárias e de vigilância sanitária, leis que regem o agronegócio, gastos com infraestrutura, lei trabalhistas, de uso do solo, e assim por diante. E cada vez mais os chineses têm interesse em controlar o processo de produção dos grãos, do fornecimento das sementes ao embarque dos produtos.

Mais concentração, sob esse ponto de vista, significa mais poder para as tradings do agronegócio. Bom exemplo de como elas operam está no fato de que mobilizam artilharia pesada com os formadores de opinião para tentar incutir a ideia de que a recuperação judicial do produtor rural pessoa física vai destruir o crédito agrícola. Como pano de fundo está o fato de que as mesmas tradings vêm perdendo sucessivos processos nas instâncias judiciais relativos ao tema.

A recuperação judicial é importante ferramenta jurídica que permite promover a reestruturação das empresas, e forma eficaz de evitar a falência que, na maioria das vezes, foi causada por condições fora do controle do produtor, como pragas (a nuvem de gafanhotos não chegou no Brasil por um triz) e a crise por conta da pandemia, dois fenômenos recentes. Antes desse instrumento legal, a alternativa do produtor era vender a própria terra para quitar as dívidas.

Mas, independentemente da bandeira do país que opere as commodities da agricultura brasileira, o fato é que o nosso produtor está cada vez mais acuado e atrelado a um sistema que poucos dominam. Enquanto, historicamente, esses países seguem negociando, o Brasil vai cooperando; ou seja, se aguardarmos passivamente a dinâmica do mercado, fatalmente seremos engolidos.

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