Após 10 anos de luta contra o Parkinson, morreu, em 8 de agosto, uma das mais importantes lideranças religiosas do Brasil. Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, passou os últimos momentos no hospital da Santa Casa de Misericórdia, em Batatais, São Paulo. Aos 92 anos e com uma obra missionária e literária reconhecida internacionalmente, partiu, deixando lições de resistência, esperança e fé em um futuro melhor.
Nascido em Barcelona, Dom Pedro Casaldáliga dedicou a vida à defesa dos mais pobres e necessitados. Chegando à região do Araguaia, em Mato Grosso, em 1968 para fundar uma missão da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, viveu períodos de extrema tensão social e política. Ao longo da ditadura militar, foi, muitas vezes, ameaçado de expulsão do país.
À violência do Estado autoritário somavam-se as ameaças dos poderosos locais, principalmente, grandes proprietários de terras insatisfeitos com o trabalho de proteção aos índios e de mobilização dos camponeses pobres. O Araguaia é área historicamente marcada por conflitos políticos e fundiários decorrentes da grave desigualdade social e da violência contra os povos indígenas, posseiros, ribeirinhos e outros grupos oprimidos. É muito significativa a denominação popular pela qual a região é conhecida: Vale dos Esquecidos.
Dom Pedro Casaldáliga insurgiu-se contra esse abandono por parte do Poder Público. Foi sagrado bispo em 23 de outubro de 1971 e, unindo-se ao movimento da Teologia da Libertação, passou a dedicar-se à luta contra o latifúndio e a opressão. Ciente de que era necessário organizar a sociedade para a proteção dos camponeses e dos povos tradicionais, participou decisivamente da criação do Conselho Indigenista Missionário e da Comissão Pastoral da Terra.
A obra do religioso é amplamente reconhecida, tendo mais de 100 títulos traduzidos para várias línguas. Parte significativa de suas memórias está registrada em versos. A poesia é revestida de sensibilidade e antecipa temáticas que viriam a marcar a literatura e as ciências sociais nos anos vindouros, como a crítica aos epistemicídios e a discussão sobre o hibridismo cultural.
Ele produziu libelos pela proteção dos mais fragilizados diante da realidade da concentração de terras e da perseguição aos camponeses e indígenas. Em 1989, no livro Águas do tempo, escreveu: “Debaixo da terra os mortos/pedem os cantos da tribo.../e só respondem os bois/calcando a paz invadida”. Nesse mesmo ano, outro livro de sua autoria, Creio na justiça e na esperança, traz lições de fé e de amor ao próximo.
Para Dom Pedro Casaldáliga, que, em lugar do tradicional anel de ouro usado pelos bispos da Igreja Católica Apostólica Romana, portava ornamento similar feito de tucum, espécie de palmeira nativa da Amazônia, era impossível falar em direitos humanos sem falar em acesso à terra. Assim como era inconcebível defender direitos dos povos indígenas sem garantir a proteção de suas áreas historicamente reconhecidas.
Na trajetória do religioso se fundem a ação missionária, o engajamento político e a profunda reflexão sobre a realidade em que viveu e que, por toda a vida, procurou transformar. Seu serviço pastoral adotou o lema “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”.
Sejamos todos nós capazes de encontrar, no exemplo de Dom Pedro Casaldáliga, fonte de inspiração e entusiasmo para a construção de um país mais fraterno e mais humano. Um caminho que, segundo seus ensinamentos, faz-se com amor e fraternidade, mas, também, com utopia e coragem.
*Procurador federal dos direitos do cidadão
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