Visão do Correio

Médico é médico, polícia é polícia

''A medida obriga o profissional de saúde a desempenhar papel alheio às competências aprendidas nos bancos universitários''

Correio Braziliense
postado em 01/09/2020 04:00 / atualizado em 01/09/2020 08:18

Lúcio Flávio, famoso personagem da crônica policial na década de 1970, disse uma frase que o imortalizou: “Polícia é polícia, bandido é bandido”. Na carreira marcada por roubos, homicídios e fugas hollywoodianas, envolveu-se com policiais do Esquadrão da Morte. Depois os denunciou, ocasião em que proferiu a sentença que marcava a linha divisória dos dois mundos.


A citação da frase não se deve ao acaso. Vem a propósito de portaria do Ministério da Saúde (MS) publicada na sexta-feira que impõe mudanças nos procedimentos do médico em casos de aborto decorrente de estupro. A medida obriga o profissional de saúde a desempenhar papel alheio às competências aprendidas nos bancos universitários.


Ele vira informante. Terá de comunicar o fato à polícia, verificar a possibilidade de fazer ultrassom para ver o feto e interrogar a vítima sobre o crime. Não só. Será obrigado a apresentar à gestante uma lista com riscos e desconfortos decorrentes do procedimento. E, ainda, preservar evidências materiais do crime para entregá-las à autoridade policial.


Em bom português: em vez de cuidar, mandamento primeiro dos que fizeram o juramento de Hipócrates, o médico vai interrogar, apurar, denunciar e coletar provas. A gestante — insegura, temerosa e traumatizada — protagonizará sessão de tortura: reproduzir a cena de violência e sofrer constrangimentos para desistir do direito assegurado por lei.


Ninguém bate à porta do hospital para registrar queixa. Vai lá em busca de ajuda para atenuar a dor. Profissionais da saúde têm a obrigação de acolher e acreditar nas palavras da mulher. Exigir boletim de ocorrência ou sentença judicial é contrariar a norma legal. A pretensão pró-vida da portaria é, de fato, pró-morte.


Médico é médico, polícia é polícia. A inversão de papéis acarretará consequências. A mais grave: a imposição de constrangimentos ao exercício de direito pode incentivar a busca pelo aborto ilegal, que põe a vida da gestante em risco. Não só. Rouba a autonomia da mulher mediante tutela que desconsidera a capacidade de ela pensar e decidir.


Dez deputadas de diferentes partidos se mobilizaram para sustar a portaria do Ministério da Saúde. Vale a sugestão: o ministro interino Eduardo Pazuello pode evitar mais um desgaste para a pasta. Deve dar ouvidos à sensatez e voltar atrás na medida que criminaliza a vida e alarga a avenida da morte.

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