Raça

Wakanda para sempre: a reparação devida

A positividade da representação negra numa megaprodução americana fez história. Sua morte prematura potencializou a lenda ante a força humana demonstrada na vivência do câncer fatal

Vera Lúcia Santana Araújo*
postado em 05/09/2020 17:30 / atualizado em 05/09/2020 17:34
O racismo como elemento estruturante da formação nacional produz desigualdades raciais que sustentam a organização econômica, política e social -  (crédito: MAURO PIMENTEL / AFP)
O racismo como elemento estruturante da formação nacional produz desigualdades raciais que sustentam a organização econômica, política e social - (crédito: MAURO PIMENTEL / AFP)

Representatividade. Esse foi o móbile que imortalizou o ator Chadwick Boseman, o super-herói negro do premiadíssimo filme Pantera Negra. A positividade da representação negra numa megaprodução americana fez história. Sua morte prematura potencializou a lenda ante a força humana demonstrada na vivência do câncer fatal.

Representatividade. Eis a motivação de consulta da deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ) ao Tribunal Superior Eleitoral, que respondeu afirmativamente à necessidade de políticas indutoras da representação de negros nos poderes Executivo e Legislativo. Na solução, a destinação proporcional de recursos financeiros do fundo partidário, do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (Fefc) e do tempo da propaganda eleitoral.

Interessante notar que a consulta partiu da mulher negra de trajetória política mais vitoriosa no país, conhecedora dos óbices à conquista de legenda partidária para uma disputa eleitoral competitiva, viável. Os pontos de partida são díspares. Sob essa luz, a lei já instituiu cotas partidárias para as mulheres, com obrigatoriedade de alocação de recursos financeiros às candidaturas femininas. Decisão do TSE.

Sob o aspecto racial, a história brasileira se assenta no inconcluso processo abolicionista. O marco civilizatório tardiamente adotado não se fez acompanhar das medidas de inserção no sistema produtivo ou educacional, alijando o negro da vida política nacional. Temos uma sociedade cindida racialmente.

A resposta do Judiciário eleitoral abre a possibilidade de negros se verem nos parlamentos, na chefia de municípios, estados e, por que não dizer, da União, sim, no comando da Presidência da República. Nada mais legítimo num país de maioria negra.

Conforme dados do IBGE, em 2019, somávamos 55,8% da população, mas não há integração concreta ao projeto de nação. O racismo como elemento estruturante da formação nacional produz desigualdades raciais que sustentam a organização econômica, política e social, presente em todo recorte sobre o qual se olhe mais acuradamente e de forma empática com os afro-brasileiros.

Como construção de múltiplas funcionalidades, o racismo no Brasil contou sempre com relevante aporte estatal. Desfazer mecanismos institucionais que preservam desigualdades raciais também deve ser tarefa do Estado. Elaborar e executar políticas públicas que desmantelem estruturas racistas impeditivas da simples efetividade dos preceitos que a chamada Constituição Cidadã confere a todos, indistintamente, é dever público.

É nessa perspectiva que se situa a recente decisão do TSE, respondendo à referida consulta apoiada pelo movimento negro. No voto, o ministro relator, Luís Roberto Barroso, discorreu bem acerca das desigualdades, a exigir do Estado a adoção de medidas de conteúdo afirmativo para as disputas eleitorais a partir de 2022, mas nada impede que os partidos políticos impulsionem as candidaturas negras já nas eleições de novembro.

O exercício da representação política legislativa e executiva se dá por meio dos partidos políticos, e o alto custo das campanhas constitui inequívoco fator inibidor da própria atividade político-partidária. A inovação deve motivar o movimento negro como nicho formador de lideranças legítimas dos interesses dos populares, vinculados às pautas que dialogam mais diretamente com as lutas antirracistas. Comprometer os partidos com as agendas da igualdade racial ganha apoio institucional.

Aqui, trago o artigo de Edson Lopes Cardoso, O momento é de afirmação política, de 2005, e depois compôs o livro Negro, não — a opinião do Jornal Ìrohìn, pág. 31-32: “Não queremos participar apenas da montagem de uma foto com o presidente da República. Repudiamos o instantâneo fotográfico de natureza populista, assim como toda subalternidade que caracteriza quase a totalidade da inserção negra institucional. Queremos aprofundar nossa experiência de luta e organização para a conquista efetiva de poder político”.

A decisão do TSE não garante as transformações estruturais que postulamos, mas constitui mais um reconhecimento do papel do Estado com a efetivação da igualdade. Os deveres da reparação apenas se esboçam. O ativismo negro faz e fará avançar a ocupação dos lugares que nos são devidos por direito. Representatividade.

*Advogada, integrante da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno e da Executiva Nacional da Associa

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