A mitologia judaico-cristã

Na prática os judeus seguem Javé, e os cristãos, Cristo, morto na cruz, mas ressuscitado. A fé remove montanhas, quanto mais crenças e mentes

Sacha Calmon*
postado em 05/09/2020 21:14 / atualizado em 06/09/2020 11:08
 (crédito: GZ)
(crédito: GZ)

No livro Deus uma biografia, de Jack Miles, ex-jesuíta, a “ira de Deus assume formas distintas, e o profeta Isaías parece procurar metáforas ainda mais fortes para descrevê-la: “O nome do Senhor vem de longe, ardendo na sua ira e lançando espessa fumaça; seus lábios estão cheios de indignação, e sua língua é como um fogo destruidor; sua respiração é como um rio que transborda e chega até o pescoço — para peneirar as nações com a peneira da destruição e colocar no queixo dos povos um freio de fazer errar (Isaías 30, 27). ”

Este Isaías, violentíssimo, é o mesmo que depois fala do “servo sofredor”? A resposta é SIM! O servo sofredor é Israel surrada e castigada. Javé é o suprassumo que, cosmicamente, arrasa e passa “pela peneira” as nações da Terra, em que pesem os desmentidos da realidade.

“Essa fúria, longe de ser mera irritação, pode ser mortal: quando Core, Natã e Abirão rejeitaram Moisés, este ficou furioso. Assim também estava Deus: os três foram engolidos pela terra e, quando outros julgaram o castigo severo foram vitimados pela praga (Números 16). A ira de Deus traz destruição como ocorreu nos sucessivos desastres de Isaías 9, 8-21 (ver Ezequiel 5, 13-17), com a repetição da frase “por tudo isso, sua ira ainda não se aplacou e sua mão permanece erguida”. Traz também miséria às pessoas, como se pode ver nos Salmos 88, 16; 90, 7-10; 102, 9-12.

O que provoca a ira de Deus? Muitas vezes, parece não haver nenhuma razão. Depois que Davi enterrou Saul, “Deus se aplacou para com a Terra” (2 Samuel 21, 14); mas, nos versículos 24, 1, “a ira do Senhor tornou a acender-se sobre Israel”, embora nada tenha ocorrido nesse intervalo. Com frequência a ira desponta após sinais de comportamento inadequado, como no livro de Ezequiel (25, 15-7).

Mas, se a ira envolve justiça, ela se abatia mais sobre Israel — povo que foi convidado a viver em santidade e a realizar as obras de Deus, recebendo a Aliança como condição para ajudá-lo a fazer isso. Os profetas (como ‘porta-vozes’ da Divindade) muitas vezes referiram-se a essa ameaça divina (ardil para dominar o social?)

Apesar disso, há uma ênfase na paciência de Deus para vencer a obstinação dos judeus, povo de cerviz dura. A ira de Deus pode ser imediata: “quando a carne estava entre seus dentes antes que fosse mastigada, acendeu-se a ira do Senhor contra o povo, e o Senhor o feriu com uma praga bastante grande” (Números 11, 33). Com frequência maior, porém, a Bíblia afirma que Deus é calmo em sua ira, como no Salmo 103. “O Senhor é misericordioso e piedoso, lento para a cólera e abundante em amor. Salmo 103, 8; Êxodo 34, 6 e Isaías 48). ” Esse Deus é judeu. Quando Jesus o chamou de “Pai” é dele que se trata. Cristo quis um Pai só de amor. Por isso mataram-no.

Esse Javé violento mesclado de piedade, será passado ao cristianismo. Primeiro as heresias, as declarações de hereges (anátema). Depois, as perseguições, as cruzadas, excomunhões, abjurações, inquisição e as guerras entre católicos e protestantes, por mais de duzentos anos, ainda latente na Irlanda, Miles afirma: “Já falei antes, neste prólogo, de um clássico da literatura mundial, ou seja, a Bíblia hebraica ou Antigo Testamento”, como se ambos fossem intercambiáveis. Serão? Judeus e cristãos os consideraram como tal. É verdade que ambos sabem que a Bíblia cristã tem duas partes distintas: o Antigo Testamento e o Novo Testamento.

Mas não são exatamente a mesma obra. (...) O conteúdo é o mesmo em ambos os casos, mas não a ordem. O Antigo Testamento (acrescento eu, por obra de mãos cristãs) transfere a grande coleção profética — Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores — do meio para o fim, deixando no meio o que chamamos antes de livros do silêncio, que compreendem Jó, Lamentações, Eclesiastes e Ester, com o fito de convenço.

Os cristãos do Império romano — grupo de classe baixa, sem nenhuma tradição literária enquanto religião nova, também sem tradições sagradas a preservar. Adotaram o novo dispositivo imediata e universalmente. O códex pode ser, de fato, invenção deles (ob. cit. 27/29). A parte judaica virou texto cristão.

“O Deus venerado pelo antigo Israel brotou de uma fusão de deuses que um povo nômade encontrou em seu vagar. Um interessado em rastrear esse processo pode fazê-lo por meio de impressionantes estudos técnicos como Yahweh and the gods of Canaã, de William Foxwell Albright, Canaanite myth and Hebrew epic, do aluno de Albright, Frank Moore Cross, e The early history of God, pelo aluno de Cross, Mark S. Smith. São obras de imaginação controlada e de maciça erudição.” (ob. cit. 37). É tribal, jamais universal, como quis Paulo em Cristo.

O Ligamen entre Javé e Jesus, fê-lo Constantino. Javé virou o Deus-pai, Jesus o Deus-filho, sob os auspícios do Espírito Santo. Mitologia, em estado puro. Na prática os judeus seguem Javé, e os cristãos, Cristo, morto na cruz, mas ressuscitado. A fé remove montanhas, quanto mais crenças e mentes.

*Advogado

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