Vamos supor que você confiasse a alguém a gestão de seu patrimônio e renda. Quatro anos depois, descobre que o gestor, apesar de reduzir despesas salariais, cometeu os seguintes pecadilhos:
1) vendeu bens sem licitação;
2) aumentou suas renúncias de receitas;
3) parcelou dívidas dos devedores em até 84 meses, concedendo, em alguns casos, redução de até 70%;
4) deixou que grileiros invadissem suas terras;
5) no balanço geral, deixou sua dívida líquida mais que duplicar em quatro anos.
Como você reagiria em tal situação? Você diria que o gestor foi austero e honesto (por ele ter reduzido salários)? Ou você gritaria pega ladrão?
Os cinco “pecadilhos” que listei foram cometidos contra a União após o impeachment. Vou resumir a austeridade fake praticada no Brasil citando dois conjuntos de estatísticas oficiais.
A Dívida Líquida do Governo Central e BC, que vou aqui chamar de Dívida Líquida Federal (DLF), é o indicador mais amplo do endividamento federal. A dívida diminuiu, nos governos Lula e Dilma, de 37,7% do PIB (2002) para 22,2% do PIB (2015).
Observem que, enquanto o Brasil tinha gestores “gastadores” e “populistas”, o governo federal se desendividou. E se desendividou muito. Então Michel Temer articulou o impeachment de Dilma. Do início do impeachment (dez/2015) até o fim do governo Temer (dez/2018), a DLF saltou de R$ 1,3 trilhão para R$ 2,7 trilhões. A relação DLF/PIB subiu para 40,5%.
Em seguida, os mesmos grupos que derrubaram Dilma elegeram Bolsonaro, que radicalizou a “austeridade”. Mesmo assim, a DLF cresceu de R$ 2,7 trilhões (dez/2018) para R$ 3,1 trilhões (jun/2020). O aumento no atual governo chegou a 14% em 18 meses. Em 2019, antes da pandemia, o incremento foi de 11%. A DLF saltou para 43,6% do PIB em jun/2020.
Curiosamente, a mesma DLF aumentou 7% no primeiro biênio de Lula. No primeiro triênio de Dilma, o crescimento foi de apenas 2%. Ou seja, Paulo Guedes aumentou a DLF sete vezes mais que Dilma em metade do tempo.
Vamos ao segundo conjunto de dados. Os gastos tributários da União, que vou aqui chamar de renúncias tributárias, constam das Leis Orçamentárias. Tais renúncias somaram R$ 1,475 trilhão entre 2016 e 2020. Ou seja, o governo federal renunciou a quase R$ 1,5 trilhão em impostos desde o ano do impeachment.
Não é estranho um governo sob crise fiscal — que não tem dinheiro para pagar aposentadorias — perdoar R$ 1,5 trilhão em impostos? Parte substancial das renúncias beneficia grandes empresas, inclusive multinacionais. A Constituição obriga o governo federal a pagar aposentadorias. Ela não o obriga a renunciar a tributos.
Dados oficiais mostram que as isenções têm aumentado ano a ano desde o impeachment. Elas passaram de R$ 265 bilhões em 2016 para os R$ 331 bilhões projetados para 2020. O nome que se dá a isso é permissividade, o oposto da austeridade. A Receita Federal está à mercê de lobbies empresariais.
Nunca os deficits fiscais foram tão grandes. Nunca o país se endividou tão rápido. Nunca o governo perdoou tanto imposto e tanta dívida de empresários. Nunca se vendeu patrimônio público com tanta leviandade.
Uma gestão austera deveria ser diferente. O gestor honesto zela pelo patrimônio público. Impede que terras públicas sejam invadidas. Não vende bens sem transparência. Não alivia as dívidas de grandes sonegadores. E, acima de tudo, o gestor honesto reduz as dívidas públicas, não as aumenta.
Bolsonaro e Temer nunca foram austeros. Eles apenas cortaram benefícios de trabalhadores e os distribuíram para os poderosos. O Estado de bem-estar social previsto na Constituição começou a ser substituído, após o impeachment, pelo Estado de bem-estar empresarial.
A mudança gera custo fiscal porque o apetite dos grandes empresários é maior do que o dos trabalhadores. Estes se contentavam com empregos e aumentos do salário mínimo; aqueles, querem privatizar o Estado e rasgar a Constituição.
O Brasil do pós-impeachment é vítima de gestão predatória do patrimônio público. O mais espantoso é que os maus gestores tentam se fazer passar por centuriões da moralidade e da austeridade.
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