30 anos do ECA e a proteção das meninas

A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019.

PAULA TAVARES
postado em 10/09/2020 08:00
 (crédito: Cristiano Gomes/CB/D.A Press)
(crédito: Cristiano Gomes/CB/D.A Press)

Ao comemorar o 30º aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), casos hediondos como o da criança capixaba de 10 anos violada sexualmente pelo tio mostram que estamos longe de garantir a plena proteção de nossas meninas. Violências desse tipo são ainda comuns no Brasil. A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019.

Segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100), em 2019, foram registrados 86,8 mil casos de violação de crianças e adolescentes, dos quais 11% se referem à violência sexual. Além da altíssima incidência, os dados representam aumento de 14% de registros em relação a 2018.

É grave notar que, em 73% dos casos, a violência sexual acontece na casa da própria vítima ou do agressor e, em 40%, é cometida por pai ou padrasto. Em 87% das ocorrências, o agressor é homem, enquanto 46% das vítimas são adolescentes de 12 a 17 anos.

O horror dessa realidade evidencia a importância de garantir que o ECA e leis que protejam os direitos de crianças e adolescentes se façam valer plenamente.

Adotado em julho de 1990, o estatuto é taxativo na proteção de indivíduos de até 18 anos contra a violência física, psicológica ou sexual, e visa seu pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade. Os preceitos estão alinhados ao combate de violação igualmente danosa e frequente praticada contra meninas: o casamento infantil.

As evidências mostram que a violência sexual está muitas vezes vinculada às questões, intimamente correlacionadas, de casamento e gravidez precoces. Nesses casos, as violações aos direitos da criança e do adolescente, bem como os riscos e danos, multiplicam-se. Com o trauma do abuso, meninas que engravidam podem sofrer sequelas graves de saúde física, mental e emocional. As chances de morte de gestantes com 15 anos ou menos são quatro vezes maiores do que entre as mais velhas. As vítimas enfrentam diversas outras consequências que prejudicam seu bem-estar socioeconômico, como o dos filhos, da família e da comunidade.

Um dos impactos mais claros é na educação. As garantias do ECA, de igualdade de condições no acesso e permanência na escola, são também afetadas pelo casamento precoce, causa frequente do abandono do ensino por parte das meninas. Estudos mostram que o casamento infantil reduz a probabilidade de conclusão do ensino médio — no Brasil, de cada 10 meninas que engravidam na adolescência, sete não o concluem. Além disso, 75% das adolescentes de 15 a 17 anos que têm filhos estão fora da escola.

Ao mesmo tempo, a permanência das meninas na escola reduz enormemente os riscos de casamento e gravidez precoces. Assim, para além de estabelecer proteções na lei, investir mais na educação para melhorar o acesso e a qualidade do ensino contribuiria de maneira eficaz para mudar o atual quadro. No país onde quase 2 milhões de crianças e adolescentes estão fora da escola, segundo dados do IBGE, o impacto seria significativo.

Apesar das evidências, relatório recente do Banco Mundial mostrou que, aproximadamente, 340 mil meninas se casam por ano no Brasil antes dos 18 anos. A redução das uniões, formais ou informais, tem sido muito lenta — entre 2000 e 2015, a incidência de casos caiu apenas dois pontos percentuais. Com taxa de casamentos precoces de 19,7%, o Brasil continua entre os países com os mais numerosos registros dessa prática na América Latina e no mundo.

Por seu lado, apesar dos avanços, o Código Civil ainda permite o casamento aos 16 anos mediante autorização dos pais ou judicial. Até pouco tempo atrás, as exceções à idade legal para o casamento, capacidade adquirida aos 18 anos com a maioridade civil, eram ainda mais numerosas. Antes da revisão de março de 2019, o código permitia que meninas se casassem, a qualquer idade, em caso de gravidez ou para evitar a imposição ou o cumprimento de pena criminal. Se o caso da menina de 10 anos tivesse ocorrido antes da recente alteração do Código Civil, ela poderia se casar.

Impulsionada em grande parte por estudo do Banco Mundial de 2017, evidenciando a importância de fechar brechas na legislação quanto ao casamento infantil, a recente reforma do Código Civil eliminou as lacunas mais sérias, passando a proteger, sem exceções, meninas abaixo dos 16 anos. Aproximou, assim, as previsões do código das proteções garantidas pelo ECA, revisado também em 2019 para instituir medidas preventivas e educativas visando diminuir a incidência da gravidez na adolescência.

Como indicam os fatos recentes e as estatísticas no Brasil, resta muito a fazer para garantir, no campo legal e das políticas públicas, a efetiva proteção de meninas e mulheres contra a desigualdade, a discriminação e algumas de suas manifestações mais extremas — a violência sexual e o casamento e a gravidez precoces.

Faltando só 10 anos para prestarmos contas dos compromissos assumidos com base na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e o Objetivo 5 de “alcançar a igualdade de gênero e empoderar as mulheres e meninas”, precisamos acelerar esforços e priorizar a questão. Só assim estaremos cumprindo responsabilidades e deveres estabelecidos pelo ECA de assegurar os direitos e a proteção integral da infância e da adolescência.

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