Era o ano de 1992. O presidente Fernando Collor de Mello tinha acabado com o cinema brasileiro, mas, teimosos, iríamos filmar a única produção daquele ano Lamarca, de Sérgio Rezende, baseado no livro O capitão da guerrilha, de Emiliano José e Oldac Marinho. Sobre o homem que Jair Bolsonaro, adolescente, ajudou a perseguir no interior do Estado de São Paulo. O homem que a ditadura militar considerava desertor e que nós tínhamos como herói.
Fui escalado para o papel e mergulhei na preparação da empreitada. A primeira façanha exigida seria emagrecer 15kg em 30 dias. Com a ajuda de então desconhecidos ortomoleculares prescritos por um treinador, ex-mister músculos, muita força de vontade e alguma irresponsabilidade, me lancei na tarefa de ser Lamarca.
Como método de treinamento, escrevia inúmeras cartas imitando a letra do capitão que foi banido por se rebelar contra o Exército roubando armas do quartel. Aliás, vocês sabiam que o nosso Exército e Marinha atuaram pela manutenção da escravidão? Os navais ajudaram no transporte dos escravizados. Leiam o excelente Dicionário da escravidão negra no Brasil, do sociólogo e historiador Clóvis Moura.
Mas voltemos ao filme. O saudoso Plinio Marcos dizia que "ator agarra até em fio desencapado para dar vida a um papel". Queremos fazer de verdade, mesmo quando são fictícios. Imagine quando se trata da história de um homem que admiramos por ter dado a vida por uma causa.
Encontrei a esposa do capitão, Maria Pavan, e o filho do casal, César. Ela havia se refugiado em Cuba. Estava de volta ao Brasil, me mostrou uma foto dele quando jovem, vestido de pijama, numa cama de dormitório militar. Ele estava com um livro nas mãos. Era Guerra e paz, do russo Liev Tolstoy. Com o roteirista Paulo Halm, consegui uma edição idêntica, emprestada, e me regozijei por ter encontrado companhia para as longas esperas do set de filmagem e a chave para compreender, na mesma leitura, identificação com a grandeza do personagem.Aprendi a manejar revólveres e metralhadoras. Carlos Lamarca havia sido campeão de tiro. Muito respeitado por isso no quartel.
Eu estava pronto para começar. A produtora Mariza Leão pediu que escrevesse alguma coisa sobre como era filmar naquele momento difícil no Brasil. Meu texto faria parte do release de divulgação. Eu havia conseguido minha cidadania italiana e acabado de dirigir Assim é se lhe parece, peça de Luigi Pirandello, no Teatro dos 4, no Rio de Janeiro. A figurinista e dona do teatro, a italiana Mimina Roveda, havia trabalhado com Federico Fellini e me contava como era o grande diretor.
Acho que esses foram os "gatilhos", como se diz hoje. Fellini me convidou para fazer um filme com ele. Os outros atores convidados eram Jean Pierre Leaud, o fetiche de Francois Trufaut, e Pierre Clementi, o jovem com os dentes de ferro, que aparecia como amante da Bela da tarde, filme de Luis Buñuel. Para o aprendiz de cinéfilo que eu era, estava de bom tamanho. Fui a Roma e Fellini me recebeu em seu apartamento. Não me lembro de ter visto Giuletta Massina, esposa e atriz dos filmes do gênio. Fellini usava um avental e fez uma deliciosa macarronada para mim. "Não se preocupe com o roteiro. Apareça no set para ir se ambientando", ele disse.
No outro dia, eu estava em Cineccitá, o estúdio mitológico, por ironia construído pelo fascista Benito Mussolini. Fellini, com um megafone parecendo uma grande corneta, comandava as filmagens.
Era uma externa. O cenário, um cercado como uma arena de adestramento. Um picadeiro. Abriu-se uma porteira e um cavalo branco de crinas imensas galopou em círculo, quase em câmera lenta. Logo depois apareceu um pônei, branco também, desenvolveu com garbo o mesmo trajeto. Eu estava deslumbrado.
Fellini perguntou: "Capisce, Betti". Eu havia entendido tudo. Aquilo era Federico Fellini! Pensei: estou filmando com Fellini, isso é o máximo. Vou escrever um artigo para jornal.
Acordei. Estava numa Kombi, indo filmar num rio seco. A cena era pungente. Quase final do filme, esquelético, era carregado nas costas por um companheiro. A areia branca do rio salpicada de espinhas de peixe. Melancólico. Era o Brasil de Collor, quase um príncipe perto do troglodita que hoje nos desgoverna. E, apesar da pandemia da covid-19, infelizmente, em alta nas pesquisas.
Não temos saída à vista. Mi dispiace.
*Ator, diretor, produtor e autor
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