Opinião

Artigo: Currículo respeitável e trajetórias negras

Ao longo do século 20, os movimentos negros organizados surgiram em contextos específicos e acumularam experiências educacionais para elevar política, moral e culturalmente a comunidade negra

Elisângela Machado*
postado em 19/09/2020 08:59
 (crédito: Caio Gomez/ CB/ D.A.Press)
(crédito: Caio Gomez/ CB/ D.A.Press)

A sociedade brasileira sempre destinou lugar de subalternidade à mulher negra. É esperado que ela esteja em situação vulnerável e excluída dos postos profissionais mais valorizados. Herança contundente da escravidão, mulheres negras são corpos sem mente, destituídos de sentimento e discriminados. A elas são atribuídas a procriação, a nutrição dos filhos alheios e a satisfação sexual à lascívia dos senhores.

O contrato social estabelecido, que é sobretudo de raça e gênero, de forma nem sempre velada reserva às negras os degraus inferiores da sociedade. Só lhes é permitido ocupar espaços de servidão, evidenciando uma divisão racial do trabalho (vide dados do emprego doméstico no Brasil).

Nessa divisão, mulheres negras definitivamente não são acadêmicas e, quando conseguem romper as barreiras raciais, com frequência, são lembradas de que estão fora do lugar. Seus currículos são conferidos, averiguados e questionados por descrentes negros e brancos, homens e mulheres. E a indignação é, perversamente, verbalizada na expressão “um currículo respeitável”.

Desde o pós-escravidão no Brasil, as discriminações raciais têm atuado como eixos estruturantes dos padrões de exclusão social e relegaram a população negra à marginalidade do projeto de estruturação social, produziram abismo socioeducacional e, por consequência, reflexos no universo acadêmico.

A educação, um dos direitos fundamentais da humanidade, compreende uma das mais importantes áreas de mobilidade social. No entanto, é de difícil acesso à população negra, com reflexos na preparação de mulheres. Mas não sem resistência.

Ao longo do século 20, os movimentos negros organizados surgiram em contextos específicos e acumularam experiências educacionais para elevar política, moral e culturalmente a comunidade negra. Paulatinamente, a mobilização coletiva vem consolidando importantes pautas para inserção de negros nos programas educacionais, sobretudo por meio das políticas afirmativas como proposição à educação superior, registrando avanços consideráveis.

Em 2019, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação vinculada ao Ministério da Educação, registrou 210.163 pesquisadoras matriculadas nos cursos de pós-graduacão no país. Do total, 12,9% são mulheres negras, entre as quais apenas 2,9% declararam-se pretas.

A partir desse resultado, pode-se inferir que, quanto mais escuro o tom da pele, menor a presença das mulheres negras na academia, ou seja, no Brasil, 132 anos depois de assinada a Lei Áurea, ainda é notória a ausência de mulheres negras no ensino superior.

Como reflexo, no mercado acadêmico, quando examinamos o perfil racial das docentes nas principais universidades, por exemplo — Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Universidade de Brasília (UnB), a representação de professoras negras não ultrapassa os 2%. Situação semelhante é relatada por alunas e professoras de outras universidades.

Somos poucas e nossos passos vêm de longe. A construção de um currículo respeitável se faz com abnegação, estudo, reflexão, investimento financeiro, noites sem dormir, isolamento social, publicações e vivências práticas. As conquistas são graças ao esforço pessoal e ao ativismo das que vieram antes. Para chegar até aqui, foi preciso ocupar espaços nas rachaduras da estrutura.

Não é apenas um currículo respeitável. Também, há que considerar a trajetória. Isso não cabe no Lattes! Aceitar um currículo respeitável, principalmente de uma negra em posição de destaque, sem julgamentos e incômodos, é grande desafio para a nossa sociedade, é quebra de paradigmas. Exige exercício diário para rever valores, conceitos e crenças.

O caminho para implodir o pilar do racismo estrutural é romper com o padrão estigmatizado e promover a ascensão das mulheres negras a outros patamares da escolarização. É preciso avançar rumo a outra estrutura, mais plural e diversa, com representatividade e empoderamento de meninas, jovens e mulheres negras nas diversas áreas acadêmicas.

* Geógrafa, doutora pela UnB, pesquisadora e consultora

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação