Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a pandemia do novo coronavírus, realidade até então desconhecida descortinou-se não apenas sob a ótica da saúde, mas também das consequências econômicas. O novo cenário exigiu a intervenção do Estado na economia, com injeções de dinheiro, benefícios sociais, alívios fiscais, entre outras medidas, visando a evitar outra depressão econômica global. No Brasil, houve reação do governo federal para liberar crédito, flexibilizar contratos trabalhistas, diferir obrigações tributárias.
Muitos projetos de lei foram apresentados. Um deles, com pouca repercussão durante o período em que o coronavírus monopolizou boa parte do noticiário — mas com resultado impactante em eventual caso de viabilização legislativa —, é o PL 1.397/2020, aprovado pela Câmara e pendente de apreciação pelo Senado, que pretende instituir regime jurídico transitório para as empresas.
O art. 15 do projeto pretende impedir nesse período excepcional a invalidação de inscrições fiscais de empresas em recuperação judicial. O problema é que pode causar o efeito inverso do pretendido. Nem sempre a inscrição fiscal é requisito para a empresa atuar. Há situações em que tais inscrições são concedidas para facilitar o cumprimento de obrigações fiscais. Nesse caso, a invalidação da inscrição não implicaria impedir a atuação empresarial.
Muitas vezes os estados cassam inscrições fiscais de empresas como medida protetiva ao verificar que atuam de forma ilegítima em posse daquela condição mais benéfica, declarando o imposto devido, mas não realizando o pagamento reiteradamente, permitindo com que reduza artificialmente o preço dos produtos em detrimento do erário e da concorrência saudável no mercado. Não se trata de mero inadimplemento, mas de macrodelinquência tributária, que os enquadram como devedores contumazes.
O STF já validou em algumas oportunidades a possibilidade dessa medida protetiva dos estados. Estabeleceu-se em caso concreto que a cassação de inscrição estadual que outorga forma mais benéfica de apuração e pagamento do ICMS de empresa com débitos bilionários de ICMS, reiteradamente declarados e não pagos, não caracteriza sanção política, estando a atuação estatal alinhada com os preceitos constitucionais.
O artigo 15, que altera, em caráter transitório, a Lei de Falências, apesar da visível nobre intenção de impedir a suspensão de atividades de empresas em dificuldade momentânea ou histórica, acentuada em razão da pandemia, da forma com que está redigido, estabelecerá via para que os devedores contumazes voltem a inadimplir os tributos devidos, ocasionando claros distúrbios na concorrência, bem como impactando, ainda mais, o já combalido orçamento dos entes públicos num momento em que há drástica redução de arrecadação em virtude da recessão econômica.
Há clara diferença entre o devedor contumaz e a empresa que discute legitimamente determinadas incidências tributárias que julga indevidas. No Congresso Nacional, tramitam projetos de lei — PL 284 e PL 1.646/19 — que tratam dos devedores contumazes, bem como há leis estaduais que tratam do tema de forma voltada aos devedores contumazes, tal como a Lei 19.665/17 de Goiás.
Mostra-se a necessidade de impedir que devedores contumazes sejam beneficiados pelo art. 15 do Projeto de Lei 1.397/2020, cuja alteração legislativa busca proteger empresas em reais dificuldades e que visam manter as atividades em atuação regular perante o fisco e o mercado, sendo necessário estabelecer critérios mais detalhados para seu aproveitamento. A oportunidade de correção está com o Senado. É urgente e relevante a revisão da amplitude do artigo 15 pelos senadores.
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