Um presente para as futuras gerações

Sibele Negromonte
postado em 04/10/2020 23:40 / atualizado em 05/10/2020 09:00

Um dos primeiros presentes que ganhei do meu marido, no Natal de 2000, foi o livro Toda Mafalda - da primeira à última tira, que me acompanha até hoje. Na semana passada, com a morte do criador da personagem argentina, Joaquín Salvador Lavado Tejón, ou, simplesmente, Quino, resolvi tirar a coletânea da estante para dar uma folheada. E como me fez bem. A enfant terrible é realmente cativante e, com a ingenuidade dos seus 6 anos, põe o mundo todo para pensar com perguntas e reflexões instigantes.

Libertária, zangada e sem papas na língua, Mafalda, agora tenho consciência, foi a primeira feminista com quem tive contato, ainda na adolescência. Suas posições políticas e sociais, ora implícitas, ora escancaradas, são tão atuais que é difícil imaginar que a última tirinha tenha sido escrita em 1973.

Ironicamente, Mafalda é fruto da principal ciência do capitalismo: o marketing. Nasceu para ser propaganda “disfarçada” de uma empresa de eletrodomésticos. Quino, então com 30 anos e já conhecido chargista na Argentina, recebeu a incumbência de criar uma campanha que contasse a história de uma família típica da classe média. O cliente pediu que o nome de um dos personagens tivesse as letras M e A, em alusão à marca contratante. Para sorte nossa, a publicidade foi reprovada e, um ano depois, em 1964, ressurgia, agora, com a cara da querida tirinha, na revista semanal argentina Primera Plana.
Assim como Quino, Mafalda ama os Beatles e, ao contrário dele, odeia sopa. Em uma entrevista à jornalista e escritora espanhola Maruja Torres, o criador falou sobre a banda inglesa: “Sabe que musicalmente eles me estragaram totalmente, pois nunca vou poder escutar outra coisa? Falo com os jovens e eles me dizem que já foram superados, mas eu continuo teimando. Já me vejo velhinho, implicando como os de hoje em relação ao tango”. Como eu me identifiquei com isso.

Na mesma entrevista, concebida poucos meses depois de parar de escrever Mafalda, ele foi taxativo: “Estou mais confortável. Mais livre. São 10 anos de tiras, e estava começando a me repetir. Achei mais honesto, mais sincero deixar de fazê-la”. Mas, o legado está aí, mais vivo que nunca. E ainda passará de muitas gerações às seguintes.

Eu, da minha parte, pretendo manter essa chama acesa lá em casa. O livro da Mafalda está na cabeceira da cama e, todas as noites, tenho lido algumas tirinhas com a minha filha de 8 anos, apresentando a importância que essa personagem tem para as nossas vidas. Como bem disse o escritor italiano Umberto Eco, em texto introdutório da coletânea: “Já que nossos filhos vão se tornar — por escolha nossa — outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos com o respeito que merece um personagem real”.

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