“O que distingue a nossa época é o abandono da ideia de que é possível escrever a história com veracidade.” A afirmação foi proferida pelo escritor George Orwell em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. Ele lembrava que havia, até então, mesmo entre historiadores com visões discordantes em relação a um processo histórico, o que chamava de “base comum de concordância”: “fatos neutros, os quais nem um nem outro colocariam em dúvida”.
A base consensual, alertava Orwell, poderia ser destruída se o confronto bélico fosse vencido pelo totalitarismo da Alemanha de Adolf Hitler. “A teoria nazista nega especificamente a existência de algo denominado ‘a verdade’; não existe, por exemplo, algo que se chama ‘ciência’: há apenas a ‘ciência alemã’, a ‘ciência judaica’....”, dizia o autor do livro 1984, antes de avisar: “O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo no qual o Líder ou algum grupo dominante controla não só o futuro como também o passado. Se o Líder afirma que tal evento ‘nunca aconteceu’, então nunca aconteceu. Assim como dizer que dois mais dois são cinco. Essa perspectiva me apavora bem mais do que qualquer bomba”, explicava o escritor. “Hitler pode dizer que os judeus começaram a guerra e, se ele sobreviver, essa será a história oficial”, temia. “Até onde consigo vislumbrar, é a direção na qual estamos efetivamente nos movendo, embora, é claro, o processo seja reversível”, complementava Orwell, em carta a um amigo, em 1944, citada no livro Sobre a verdade.
Felizmente Hitler não venceu a guerra e, assim, não conseguiu subjugar a história. Mas as reflexões de George Orwell se mostram extremamente atuais em tempos de disseminação de uma das maiores pragas do século 21: as fake news. As notícias falsas, que tanto atrapalham os profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia, também são capazes de promover danos consideráveis – e irreversíveis – à democracia, em especial durante as eleições.
Em sua posse na presidência do Tribunal Superior Eleitoral, em maio último, o ministro Luís Roberto Barroso externou a preocupação com os efeitos da proliferação de informações falsas para o processo democrático no Brasil e no mundo. Em seu discurso, ele reconheceu o protagonismo que as redes sociais alcançaram no processo eleitoral, mas alertou para as ações de pessoas e grupos radicais interessadas em obter engajamento por meio de discursos impregnados de ódio, por ele classificados como “terroristas virtuais”.
Barroso reconheceu a atuação limitada da Justiça Eleitoral no enfrentamento desse tipo de ação. E pediu que a própria sociedade assumisse o seu papel de combater a desinformação com as suas armas: responsabilidade, empatia. “Não dá para repassar a notícia inverídica sobre o candidato rival e depois se indignar quando fazem o mesmo com o candidato da própria preferência”, lembrou o presidente do TSE.
Para o enfrentamento, vale lembrar, é fundamental que a sociedade valorize o trabalho jornalístico executado com rigor e idoneidade, como fez Barroso em seu pronunciamento. “Mais que nunca, nós precisaremos de imprensa profissional, que se move pelos princípios éticos do jornalismo responsável, capaz de separar fato de opinião, e de filtrar a enorme quantidade de resíduos que circula pelas redes sociais”, afirmou o presidente da Corte Eleitoral, ao enfatizar também a contribuição das principais plataformas de internet que se associaram ao TSE no combate à disseminação de desinformação.
Por isso, agora que os estados brasileiros vivem, por meio das eleições municipais, um novo período eleitoral, vale a pena redobrar a atenção e evitar o compartilhamento de notícias falsas. Até porque o eleitor tem todo o direito de apoiar o seu candidato. Mas não deve ter o direito de criar – e divulgar – os seus próprios fatos. É preciso defender, com intensidade e convicção, o que Orwell chamava de “base comum de concordância”; ou seja, a verdade.
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