Animal jurídico

FLAVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH
postado em 14/10/2020 07:33 / atualizado em 14/10/2020 08:00
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

É clássica a definição de Aristóteles: o homem é um animal político, politikon zoon. Durante toda a vida — que já vai longa — conheci raros animais jurídicos. São aquelas pessoas que, diante de um problema de direito, vão à jugular. O ministro Celso de Mello, que está a se aposentar no Supremo Tribunal Federal, pertence a esse grupo restritíssimo de juristas. Já lhe disse isso, de público, no plenário do Superior Tribunal Militar.

Autor de votos longos, densos, invariavelmente cultos, redigidos em mais que perfeito português em madrugadas insones, deixará lacuna difícil de ser preenchida na Suprema Corte. Todas as suas decisões, solidamente embasadas, têm fulcro na questão central a ser resolvida, passam a ser objeto de bombardeio pesado, mas sem perder o alvo da retícula.

O ministro Celso de Mello graduou-se em 1969 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assim, por apenas um ano, não fomos contemporâneos no Largo de São Francisco, nossa alma mater. Isso significa, também, que formou o espírito e inaugurou aprendizado jurídico em plena época de ditadura militar, sob o tacão do infame AI-5. Essa circunstância foi decisiva para que firmasse, desde muito cedo, solene compromisso com as liberdades públicas e o Estado Democrático de Direito.

Por onde passou deixou trajetória de substância e brilho, seja na “velha Academia”, ou no Ministério Público do Estado de São Paulo, quando ingressou classificado em primeiro lugar, logo depois de formado.

Ficamos amigos ainda na juventude, e a vida permitiu-me adiante o privilégio de trabalharmos juntos, em duas diferentes repartições públicas, na Secretaria de Cultura e depois na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Em um de seus primeiros textos jurídicos — que costumo citar com frequência — escreveu que “liberdade e autoridade são dois conceitos em permanente estado de tensão dialética”.

Antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal, já havia publicado livro substantivo Comentários à Constituição, sobre o triste texto constitucional outorgado, que vigorou no Brasil até a Carta de 1988, ainda hoje obra de referência praticamente única para quem precise recorrer ao tema.

Do tempo em que viveu nos Estados Unidos, onde completou o curso colegial (Jacksonville, Florida), trouxe um respeito quase religioso pela instituição da Suprema Corte americana, cuja história conhece minuciosamente e cuja jurisprudência cita de memória. Transportou e traduziu esse respeito para o plano de sua atuação concreta, em mais de três décadas de exercício no Supremo Tribunal Federal do Brasil.

No plano das relações institucionais entre os Poderes da União, procedeu com imensa altivez, nunca arrogância. Conquistou respeito unânime com positiva atuação entre os pares, um ponto de convergência. Jamais permitiu que o dissenso — habitual e necessário nos tribunais — resvalasse ao limite da impertinência, ou falta da serenidade que a nação tem o direito de esperar de seus magistrados. Como advertira Pedro Lessa, observou como axioma “a cordialidade que deve haver entre juízes, amparada na lealdade sem corporativismo e na franqueza sem subterfúgio”.

Honrou e dignificou nossa Suprema Corte, foi guardião de sua memória. Integrou — em minha opinião — ao lado de Pedro Lessa, já mencionado, e de Paulo Brossard, a grande trindade de ministros do Supremo Tribunal Federal. O primeiro era mineiro, do Serro; o segundo, gaúcho, de Bagé. E o terceiro, o nosso paulista, de Tatuí.

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