“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
O poeta Manoel Bandeira sabia das coisas. A fome mata o homem por dentro e por fora. A sabedoria popular conta que uma criança, já morrendo de fome, perguntou à mãe: — Mãe, no céu tem pão? — e morreu. É chocante saber que um drama como esse pode estar acontecendo em Brasília, capital do Brasil.
A 30 quilômetros da Praça dos Três Poderes, mais ou menos a distância do Palácio do Planalto ao Aeroporto de Brasília, está a segunda maior favela do país. Não se espantem com o substantivo “favela”, porque em vez da politicamente correta “comunidade”, seus habitantes preferem e usam palavras objetivas, para designar o lugar que lhes coube viver. O Sol Nascente é habitado por cerca de 100 mil pessoas, enquanto a Rocinha, no Rio de Janeiro, abriga pouco mais que isso: 120 mil.
Na favela plana da capital da República, de uma em quatro casas, veem os dejetos percorrem dois caminhos: fossas ou a vala aberta nas ruas. Já foi dito que a ingratidão é um pecado perverso, mas esqueceram de dizer que a fome é obscena. Ver, tão perto de nós, crianças morrerem de fome, sem nos indignarmos, é um crime de consciência. É devastador ver um filho passar quase o dia todo sem se alimentar e comer alguma coisinha de noite, só porque um vizinho deu. Crime também é a origem do Sol Nascente, uma terra conquistada por grilagem, com a participação de policiais militares, segundo órgãos de inteligência da Segurança Pública.
Esses brasileiros desprotegidos e esquecidos estão perdendo a importância da instituição família, pois a criminalidade das ruas é a professora de seus filhos. Nas paredes da favela, sementes de organizações criminosas disputam espaço mortal. Em algumas ruas, é fácil ver a tinta dos sprays desenhar garranchos do CSN (Comando do Sol Nascente), Os Cão do Inferno (OCI) e Os Moleque Doido (OMD). Essas pequenas quadrilhas revelam, com matança e roubo, a capacidade de aterrorizar moradores e pequenos negócios. No fundo desse palco de horrores está o narcotráfico.
Assim é o cenário dantesco daqueles que morrem de fome em Brasília, um povo surdo e mudo, até mesmo para ouvir a fé. Mesmo sem ter muito em que acreditar, começam a ver a luz da solidariedade. Aqueles que vivem alimentados oferecem armas para combater a fome. Muitas organizações e brasileiros comuns estão unidos para essa tarefa.
O Sesc-DF também entrou nessa luta. Criou um bom instrumento para enfrentar a desnutrição: o projeto Cozinha sem Sobras. Imaginem a quantidade de alimentos que é jogada fora todos os dias. Aproximadamente 60% das famílias, ditas saudáveis, desperdiçam alimentos em bom estado. As razões gravitam desde a falta de organização doméstica até desconhecer o que sobra na geladeira. Aquilo que ficou na panela, que é designado “resto”, descansa indiferente à fome alheia. Pode ser curioso, mas o bom e velho arroz com feijão dos brasilienses é o mais desperdiçado.
Hoje, o projeto Cozinha sem Sobras está distribuindo 2 mil sopas na Estrutural e na favela do Sol Nascente. Esse é o início do projeto, uma parceria com o programa de combate à fome e desperdício de alimentos Mesa Brasil Sesc. Essas iniciativas mostram uma atuação do Sesc não somente com os comerciários, mas, também, com esse braço de atendimento às comunidades mais carentes. Ele está cumprindo a obrigação de quem atende trabalhadores do comércio. Em muitas daquelas casas humildes de Sol Nascente, certamente pode morar um comerciário.
A direção do Sesc-DF reforça que a ação beneficia famílias que têm a renda comprometida pela crise financeira. A entrega itinerante das sopas, prevista inicialmente para se estender até dezembro deste ano, deve virar uma ação permanente. A redescoberta de nossos mais profundos sentimentos surge quando vemos uma mulher faminta dividir o alimento que recebeu com os filhos e ficar com a menor parte. Comove e alegra sentir a semente de luz que guardamos dentro de nós.
Deus é quem nutre os homens e a consciência do Estado é que pode acabar com a fome. Cada dia a natureza produz o suficiente para alimentar cada homem, caso usasse apenas o que lhe fosse necessário. Os que muito desperdiçam adoecem o caráter, diferentemente dos que sofrem pela doença da fome.
*Presidente do Sistema Fecomércio-DF (Fecomércio, Sesc, Senac e Instituto Fecomércio)
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