O 'CANCELAMENTO'

Diálogo é o antídoto para a cegueira seletiva do radicalismo

''Uma derivação do fenômeno é a ocorrência de ataques coordenados contra servidores públicos no exercício de suas atribuições, ultrapassando o natural e democrático direito de crítica para se transformar em verdadeiras campanhas de hostilização e intimidação''

WILLIAM DOUGLAS
postado em 27/10/2020 06:00 / atualizado em 27/10/2020 08:50

O fenômeno do momento, o “cancelamento”, demanda reflexões. Ele ocorre, basicamente, quando alguém faz, fala, acredita, defende ou dá a entender, mesmo que desprevenidamente, algo que incomoda pessoas dispostas a promover ataques reputacionais nas redes sociais até que o autor do ato ou da afirmação fique humilhado, exposto e, assim, receba a “punição” de perder totalmente sua credibilidade (e até mesmo a fonte de sustento), independentemente dos bons atos praticados ao longo da vida e também de ter respeitada sua liberdade de opinião. É uma penalidade inexistente nas leis e na Constituição, aplicada pela turba virtual, sem direito à defesa nem a contraditório.

Uma derivação do fenômeno é a ocorrência de ataques coordenados contra servidores públicos no exercício de suas atribuições, ultrapassando o natural e democrático direito de crítica para se transformar em verdadeiras campanhas de hostilização e intimidação. Algumas pessoas já estão com medo de opinar em virtude da ameaça das turbas.

O radicalismo é danoso à democracia, como comprovado por diversos episódios presenciais em que pessoas se julgaram no direito de impor sanção física a alguém. No mundo virtual, o prejuízo democrático pode ser pior porque a adesão é estimulada pela sensação de impunidade. O agressor, posicionado atrás do computador ou celular, só precisa agredir e apertar “enter”.

O antídoto para esse mal é o diálogo. Precisamos ensinar, a começar por alguns professores universitários, influencers e outros formadores de opinião, que todos temos a obrigação de conviver com as diferenças que compõem a sociedade. A imprensa, mais ainda, deve começar por dar voz aos dois lados das questões que ocupam o noticiário, dar o exemplo de contraditório e de estímulo à convivência pacífica e respeitosa entre pensamentos diferentes.

Conviver, dialogar e até aprender com quem pensa diferente não significa abrir mão de crenças ou de valores. Isso apenas demonstra apego à democracia e à civilidade como forma de equacionar conflitos. Ao longo de 27 anos como juiz federal, aplicador da Constituição da República, pude verificar, na prática, que inexiste Justiça sem que sejam considerados os diferentes lados, o respeito ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa e o direito a recurso.

Meu primeiro contato com esses valores, no entanto, foi a partir da cosmovisão judaico-cristã. Alvo de vários ataques, essa cosmovisão construiu a civilização ocidental, a mais próspera e libertária do planeta. Essa, entre outras razões, me leva a ter orgulho de seguir Jesus, pois com ele aprendi a ouvir e a conversar com todos. Ele dialogava com pecadores, beberrões, prostitutas, fiscais corruptos, políticos, crianças, fariseus e publicanos, com autoridades e com anônimos. Em todas essas situações, Jesus sempre manteve-se fiel a seus valores e princípios. Conviver e ouvir o diferente não descredencia ninguém, ao contrário, enriquece e humaniza.

Discordar de algo em relação a alguém não é motivo razoável para se tornar inimigo ou para promover ataques. Ao longo das décadas como professor itinerante ao redor do país, tive a obrigação e a grata oportunidade de estar com pessoas das mais diversas origens e convicções. Nunca faltaram discordâncias, mas percebi que a grande maioria quer a mesma coisa: um país melhor.

Um bom cidadão tem de ser capaz de ouvir a todos, de não praticar “cancelamentos” nem apedrejamentos. Isso não impede que essa pessoa tenha firmeza em suas ideias, teologia e valores. Todos precisamos ouvir mais, ter humildade intelectual e debater com fundamentos e ideias, não pedras. Ser inconsistente em seus argumentos e posicionamentos é o que faz alguém perder valor, não o fato de ter amigos de esquerda e/ou de direita.

Tenho absoluta convicção no diálogo e por isso orgulho de ter fotos e amizade com políticos de todos os partidos e matizes ideológicos, sempre em busca de uma pauta comum que nos una naquilo que é mais urgente. Participar da vida pública do país pressupõe fazer a coisa certa, respeitar e ser respeitado. As ações cotidianas importam mais que o discurso ou as companhias. Esta foi uma lição terrivelmente democrática e amorosa de Jesus. É preciso aprender a lidar com a diversidade de pensamento e não alimentar a cultura do “cancelamento”. Mais argumentos, menos adjetivos; mais ideias, menos pedras. Precisamos disto.

 

* Juiz federal há 27 anos, professor e escritor 

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