OPINIÃO

Quando os muros desabam

''A guerra comercial esconde a disputa final pela liderança global no século 21. Enquanto isso, o presidente da República no Brasil discute origem das vacinas. Subdesenvolvimento não se improvisa''

ANDRÉ GUSTAVO STUMPF
postado em 27/10/2020 06:00 / atualizado em 27/10/2020 08:55

Na semana passada, ocorreram dois fatos extremos que terão forte impacto no futuro próximo, com repercussão semelhante ao da queda do muro de Berlim ou do fim da União Soviética. O primeiro foi a admissão pelo papa Francisco de que ‘’homossexuais têm o direito de estar em uma família. Temos de fazer uma lei de convivência civil, eles têm o direito de estar legalmente protegidos’’. Esta não é uma simples declaração. É assunto sério que mexe com os fundamentos da Igreja Católica e mergulha nas profundezas dos dogmas estabelecidos ao longo de séculos.

É impressionante a coragem do argentino ao falar sem medo sobre assunto tão polêmico. A ninguém dentro do mundo eclesiástico é dado o direito de contestar o papa, figura maior da Igreja de Pedro. A declaração do sumo pontífice foi revelada no documentário Francesco, produzido pelo cineasta russo-americano Evgny Afineesvsky, exibido em Roma semana passada. “Não se pode expulsar ninguém de uma família, nem tornar sua vida impossível por isso’’. Roma locuta, causa finita. Roma fala, o caso termina. É assim. É um muro de Berlim que desaba diante de católicos perplexos. Assunto para exegetas de decisões do Vaticano.

Outro acontecimento histórico foi divulgado timidamente pelos jornais brasileiros. Existem maneiras de medir o Produto Interno Bruto de um país. Pode ser feito simplesmente pela soma de todas as receitas produzidas na sociedade em um ano. Depois é feita a transposição para o dólar. O problema é que o câmbio oscila muito e destorce o resultado. O Fundo Monetário Internacional criou outro método, chamado de paridade do poder de compra. Os técnicos fazem um cálculo sobre o valor do dinheiro em cada país, como base numa referência única. E a partir desta informação calculam o produto interno bruto de cada país.

Os técnicos do FMI utilizaram o conceito de paridade do poder de compra para medir o produto interno bruto dos países em 2020. O resultado surpreendeu. A economia chinesa ultrapassou a dos Estados Unidos. A China deve alcançar em 2020 o produto interno bruto de US$ 24,2 trilhões. O dos Estados Unidos pode chegar a US$ 20,8 trilhões. Isso significa que agora a maior economia do mundo é a chinesa. Os norte-americanos estão em segundo lugar. Novidade assustadora. O resultado era esperado para ocorrer nos próximos cinco anos. Foi antecipado pela má gestão do presidente Trump e pela pandemia. Aliás, neste ano, o único país desenvolvido que terá crescimento econômico positivo será a China. Os norte-americanos vão viver uma retração econômica. A economia brasileira deverá recuar em torno de 4,5%. A diferença entre as duas maiores economias tende a se ampliar, a favor dos chineses.

Uma comitiva norte-americana veio ao Brasil com objetivo de assinar três acordos genéricos para melhorar intercâmbio de bens e serviços. Quase uma demonstração de boa vontade para que, no futuro, possa ser assinado um tratado mais abrangente de trocas comerciais com tarifas reduzidas. O ministro Paulo Guedes fez seu habitual discurso otimista, mas se lembrou de dizer que o Brasil faz comércio com todos os países. Recado oportuno.

Os norte-americanos, no mesmo lance, colocaram na mesa uma proposta de empréstimo de US$ 1 bilhão desde que o Brasil não adquira equipamentos da chinesa Huawei, que produz a tecnologia 5G mais avançada. Os americanos não têm o que oferecer em troca. Eles não pedem para o Brasil comprar produtos norte-americanos. Eles pretendem que não se adquira produtos chineses, mas de qualquer outro país. Depois dos chineses, os equipamentos mais avançados são gerados por empresas suecas e finlandesas.

Momento interessantíssimo. É um fim da União Soviética com sinal trocado. O líder não vai desabar de um dia para o outro, porque os Estados Unidos operam a maior máquina de guerra do mundo, com onze porta-aviões e os chineses apenas um. O segundo está em construção. Mas o governo de Pequim controla um exército de dois milhões de homens. E tecnologia de alta qualidade. Colocaram uma base na face escura da Lua. Foi o que trouxe a Brasília o conselheiro de segurança nacional Roberto C. O’Brien, alto funcionário do governo dos Estados Unidos. Ele pressiona o Brasil para não comprar tecnologia chinesa sob o argumento de evitar espionagem. A guerra comercial esconde a disputa final pela liderança global no século 21. Enquanto isso, o presidente da República no Brasil discute origem das vacinas. Subdesenvolvimento não se improvisa.

 
* Jornalista 

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