Nos últimos anos, a grande imprensa tem produzido algumas matérias, impelida por dados que falseiam a realidade em torno das políticas de ações afirmativas. Ao explorar dados que supostamente apontam para presença substantiva e até majoritária da população negra em espaços outrora radicalmente embranquecidos, redações de jornais influentes enfatizam algo que lamentavelmente é enganoso. Não são exatamente fake news, porém, as informações produzidas estão contaminadas, uma vez que são também consequência da mobilização de um determinado grupo de pessoas que a jovem pesquisadora negra Viviane Coelho denominou de afroconvenientes.
Lendo a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, percebemos o que significa tornar-se negro, como são complexos os processos psíquicos para compreensão do ser negra/o em contextos estruturados pelo racismo. Pessoas negras no Brasil, politizadas ou não, precisam, por força das circunstâncias, desenvolver estratégias de sobrevivência, abraçando ou refutando o pertencimento racial.
Para esses indivíduos, ser ou não ser reconhecido como pessoa negra não é algo que possa acontecer ao sabor dos ventos, diferentemente de pessoas que podem, ou acreditam que podem transitar entre a negritude e a branquitude. Afroconvenientes são oportunistas. Não estão preocupados necessariamente com identidade negra e suas questões. Focados no projeto individual, estão dispostos a burlar as leis com o intuito de alcançarem os próprios objetivos. Beneficiam-se de brechas nos editais de concursos públicos, a exemplo das seleções que contam apenas com a autodeclaração do candidato, sem o suporte das comissões de heteroidentificação. Buscam na família aquele antepassado distante, quase esquecido, às vezes omitido pelas vergonhas que o racismo impõe.
Este contingente está fazendo muitos acreditarem inadvertidamente que o acesso da população negra, de modo expressivo, a ambientes de prestígio e poder, seja uma conquista obtida. Equívoco que pode, inclusive, comprometer a continuidade das ações afirmativas. A maneira irresponsável de gerir essa política, somada ao assédio dos afroconvenientes aos certames que contemplam cotas raciais, faz parte de uma engenharia de desmantelamento das ações que visem à ascensão das pessoas negras, historicamente alvo da violência racial. Ingenuidade pensar nesse cenário como obra do acaso, sobretudo, na atual conjuntura.
As universidades federais, por exemplo, têm sido palco de constante tensionamento entre estudantes que acessaram corretamente a política de cotas e muitos que fraudaram o regimento. Enquanto isso, várias reitorias permanecem vacilantes. Existem aquelas que assumem postura refratária às comissões de heteroidentificação, temendo a acusação de instituírem tribunais raciais.
Na Universidade de Brasília (UnB), que, diga-se de passagem, adota somente a autodeclaração como critério de identificação de candidatas/os negras/os nos cursos de graduação, foi realizado um levantamento também intoxicado, pelas razões mencionadas, que resultou em conclusão absurda. Conforme o documento, a UnB teria, hoje, um corpo discente composto majoritariamente por estudantes negras/os. Todavia, qualquer pessoa mais atenta que visitasse os câmpus da UnB antes da pandemia, teria condições de observar que o referido mapa não corresponde ao que os olhos enxergam.
A questão não se restringe às universidades, mas permeia os concursos públicos, nos Três Poderes. Não bastassem as sabotagens, logo após o encaminhamento do PL nº 4041/2020, da deputada federal Benedita da Silva, que prevê cota mínima para candidaturas afro-brasileiras, as/os afroconvenientes de plantão começaram a se manifestar. Uma repórter entusiasmada me pergunta como analiso o fato de termos uma maioria de candidaturas negras nas eleições municipais de 2020. Respondo, questionando tais dados, principalmente se foram obtidos apenas pela autodeclaração das/os candidatos.
Parece que muitos gestores não conhecem a cultura brasileira o suficiente, ao duvidar que indivíduos, sem nenhum escrúpulo, recorram à falsidade ideológica, mesmo sabendo das implicações penais. Há um outro aspecto que não deve ser subestimado. Considerando o imaginário social brasileiro sobre a população negra, alicerçado no menosprezo e desvalorização desse segmento, não nos deve causar espécie o empenho de determinado grupo de indivíduos em desqualificar as políticas de cotas raciais. Reproduzem aquilo que aprenderam ao longo de suas vidas. São resultado do racismo estrutural.
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