RACISMO

Tempo de despertar

Tão grave quanto o histórico genocida é o negacionismo. Negar o racismo estrutural é matar não apenas corpos, mas a esperança de igualdade, de liberdade, de dias melhores para todos os brasileiros. É uma segunda morte

Ana Dubeux
postado em 22/11/2020 10:24 / atualizado em 22/11/2020 10:27
Enterro de João Alberto: negar o racismo é um segundo ataque às famílias que ficam órfãs de crianças, adolescentes, jovens, pais de família -  (crédito: Silvio Avila/AFP)
Enterro de João Alberto: negar o racismo é um segundo ataque às famílias que ficam órfãs de crianças, adolescentes, jovens, pais de família - (crédito: Silvio Avila/AFP)

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, espancado e asfixiado por dois seguranças brancos em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra, não é surpreendente, não é fora do comum, não é o primeiro caso chocante de massacre de um negro e provavelmente não será o último — ainda que seja doloroso demais dizer isso. O Brasil, um país que se tornou especializado em produzir tragédias causadas por desigualdades de todo tipo, extermina a população preta. E não é de hoje.

Tão grave quanto o histórico genocida é o negacionismo. Negar o racismo estrutural é matar não apenas corpos, mas a esperança de igualdade, de liberdade, de dias melhores para todos os brasileiros. É uma segunda morte e um segundo ataque às famílias que ficam órfãs de crianças, adolescentes, jovens, pais de família.

Além de um cinismo absurdo, existe uma lógica perversa por trás da parcela da população que insiste em declarar que o racismo não existe, que episódios como o homicídio de João Alberto são pontuais e “lamentáveis”. O discurso é covarde e desrespeitoso. A fala reflete ignorância e gera omissão. Mas não é apenas isso.

Dizer que não existe racismo é dizer com todas as letras que é para deixar tudo como está, assim mesmo. Um Brasil onde uma elite machista, racista e branca tenha todos os privilégios. Um Brasil ainda escravagista, partidário de um fingimento coletivo que nos define como “democracia racial”. Não. Nós somos o que somos: profundamente preconceituosos. Tanto que muitos, talvez, de fato, não percebam. A maioria, no entanto, prefere fingir.

Ainda discutimos políticas de cotas como se não fossem necessárias para promover justiça e inclusão. Ainda ignoramos que mulheres negras são a parcela mais vulnerável da sociedade. Que jovens pretos são os mais assassinados e os mais encarcerados. Que as estatísticas nunca deixaram de exibir todas as desigualdades no mercado de trabalho, nas escolas, no nível de renda.

Quem nega, repito, mata de novo. Mata a memória de quem foi barbaramente assassinado. Mata a confiança de que a justiça será feita. Mata a reflexão que poderia levar à mudança após um caso tão emblemático como este. Mata a esperança de igualdade. E mata a si próprio, negando-se o direito de ser um ser humano melhor, que está aqui para evoluir.

Vejo, contudo, avanço. Vejo manifestações necessárias. Vejo cada vez mais espaço preenchido com o grito das pessoas pretas. Este é o eco que pode reverberar mudança. Ela está acontecendo aos pouquinhos, a despeito do querer branco e privilegiado. Convido você a ampliar esse espaço. Dê a voz, dê a vez. Reconheça, ouça, leia, estude e seja novamente alfabetizado, desta vez pelas vozes pretas.

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