Não haveria entre nós nenhum Zola para, com espírito sobranceiro, defender o que convém ser defendido? Onde estão nossos intelectuais e homens de imprensa? Teriam todos aderido ao pensamento dominante ou a ele se submetido por receio de cometerem novas heresias? Sem contraponto, o pensamento dominante torna-se único! E não foi justamente contra algo assim que os iluministas reagiram no passado, lançando as bases da democracia moderna? Ora, não há verdadeira democracia sem independência de pensamento, e esta exige a coragem moral de remar contra a maré.
O Brasil sofre de muitos males: as desigualdades sociais são chagas difíceis de fechar em nossa sociedade, e a corrupção é uma hidra venenosa de múltiplas cabeças que não se deixa matar. Sofremos, no entanto, de algumas doenças enganadoras. Embora seus sintomas indiquem um mal verdadeiro, uma certa tendência hipocondríaca tem exagerado sua morbidade.
A religião não é perversa e tampouco obscurantista porque, com esquecimento dos santos e das pessoas de alma caridosa, fixou-se a lembrança das igrejas perseguidoras de hereges e de bruxas; a política não é perniciosa pelo fato de, a despeito dos bons políticos, abrigar tantos canalhas e a medicina não é charlatã apesar da existência de alguns charlatães.
Não, o Brasil não é uma democracia racial. Inexiste tal coisa, porque, ao falarmos dela, pensamos imediatamente num sistema ideal, e não na democracia como praticada pelas pessoas. Segundo o mesmo padrão, deveríamos todos negar a existência da própria democracia, pois, em qualquer lugar do mundo, ela está longe da perfeição idealizada.
Sim, o Brasil é uma democracia racial, à medida em que isso é possível. Quando o termo foi cunhado, na primeira metade do século passado, como negar que nosso país não constituísse uma democracia racial comparada com o odioso regime de segregação vigente nos Estados Unidos, com as cruzes em chamas da Klu Klux Kan e com os linchamentos e execuções sumárias de pessoas negras por brancos racistas?
Não, o Brasil não é um país racista, embora haja racismo no Brasil. Sinto-me pessoalmente ofendido quando afirmam isso, pois a generalização indevida me atinge de algum modo. Conheci pouquíssimas pessoas que, de fato, nutriam preconceitos raciais, mas a esmagadora maioria das que conheço repudia tal sentimento. No Brasil, nunca houve leis discriminatórias. Rosa Parks teria precisado de outro motivo para se rebelar aqui e deflagar o movimento pelos direitos civis, conforme ocorrido nos EUA. Em nosso país, as pessoas negras não eram segregadas nos transportes públicos, nem os melhores banheiros, bebedores e outras instalações de acesso popular, vedados à gente de cor. Como considerar o Brasil um país racista se seu Congresso aprovou a lei Afonso Arinos durante a plena vigência do regime segregacionista nos Estados Unidos e anos antes do legítimo ato de indignação de Rosa Parks?
Há, entre nós, nítida tendência de mimetizar o que ocorre nos Estados Unidos, de reproduzir precisamente aqui o que acontece lá; pior, de até desejar nos convencer de o racismo no Brasil ser mais maléfico do que o dos EUA, como se nossas histórias sociais tivessem seguido rumos exatamente paralelos, mas com maior gravidade no Brasil. Pretende-se polarizar a sociedade brasileira dividindo-a entre brancos e negros (situação prevalecente nos EUA), malgrado sua intensa miscigenação, que, desde Gilberto Freyre, pelo menos, tem sido enaltecida como característica positiva de nosso povo. Nos Estados Unidos, não se cogitava reconhecer a condição mestiça de uma pessoa; a figura do mulato era inconcebível por sua incompatibilidade com as leis discriminatórias (essa palavra vem até assumindo teor ofensivo entre nós). Se a lei impunha a segregação das pessoas de cor, não podia haver dúvidas quanto à pele de alguém: ou era branca ou era negra. Valia a chamada “lei da gota de sangue”: bastava uma gota de sangue negro para que uma pessoa fosse negra. Por isso, Barack Obama é negro nos Estados Unidos, embora sua mãe seja branca.
Por que queremos ser como eles?
Antigamente, no Brasil, os mulatos desejavam passar por brancos para serem mais bem aceitos socialmente, e algumas teorias eugênicas de cunho racista pregavam, não a segregação, mas o branqueamento da “raça”. Hoje, muitos deles querem se passar por negros, e outras teorias ditas antiracistas, mas animadas pelo sentimento de raça, pregam não a indistinção racial, a irrelevância da cor da pele assim como é irrelevante a cor dos cabelos, não o valor da condição humana que iguala todos, mas, além da consciência de raça, o enegrecimento da “raça”, classificando como negros todos os que possuem alguma porção de sangue negro.
Quando nos livraremos dessa agitação ideológica a fim de podermos assumir o verdadeiro tom de nossa pele e não darmos a mínima importância a isso?
Todos os movimentos, a despeito de suas motivações, são lícitos e, em sua maioria, positivos. Contudo, à semelhança dos organismos vivos, os movimentos também possuem instinto de conservação. Se faltar lucidez ou bom senso a suas lideranças, eles correm o risco de superdimensionar seus objetivos e de agravar suas causas com o intuito de justificar e preservar suas existências, pois, se aquilo contra o qual lutam não for grave o bastante, a necessidade do movimento se enfraquece. O perigo decorrente é a radicalização ideológica, ainda mais se houver algum modelo no qual espelhar-se.
O movimento negro tem seu lugar no Brasil. De modo geral, os negros e também os mulatos ainda sofrem os efeitos duradouros de condições históricas prejudiciais a seu justo e equilibrado desenvolvimento socioeconômico. E, nesse sentido, deve contar com todo o nosso apoio, mas que ele encontre e firme suas raízes em solo brasileiro, que não pretenda polarizar nosso povo e que não queira reproduzir a efervescência revoltada do movimento americano, como se não tivéssemos capacidade e tirocínio para bem analisar nossas condições e para identificar e corrigir, mediante processos próprios, os problemas que nos são próprios.
Puna-se com o devido rigor o crime de racismo, mas não ponhamos automaticamente na conta do racismo todos os eventos deletérios e criminosos que afetarem pessoas negras. Temos pecado muito, mas precisamos nos remir de nossos pecados, não devemos nos autoflagelar atribuindo a eles a mesma gravidade cometida por outros.
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