ARTIGO

A bruxa da rua e a Justiça que queremos

''A 'bruxa', que cortava o frango do jantar, sai pelo portão, com a feição desfigurada, a bola em uma mão e a faca na outra e berra: 'da próxima vez, eu furo a bola e sei lá o que mais eu posso fazer com essa faca'!''

Peço ao leitor que imagine uma comunidade na qual crianças jogam bola na rua porque não dispõem de um campinho adequado. Suas mães estão conversando na calçada. O assunto é o de sempre: a falta de emprego, a falta de segurança, as incertezas sobre o futuro... mulheres que se reúnem, sempre ao cair da tarde, para expressarem, com valentia — e com a esperança que toda ausência carrega — as suas inúmeras faltas... Nessa mesma rua, mora uma senhora com cara de poucos amigos, apelidada de “a bruxa da rua” e que vive solitariamente com seus muitos gatos, em especial, o seu favorito, Felini. Um lance de bola não previsto — e, aqui, eu confidencio ao leitor não estar bem certa sobre essa afirmação... afinal, jogar a bola com veemência bem em frente à casa da “bruxa” é tão estimulante... Pois bem, a bola atinge a janela da “bruxa” e os cacos de vidro cortam a pata do Felini que se esvai em sangue.

A “bruxa”, que cortava o frango do jantar, sai pelo portão, com a feição desfigurada, a bola em uma mão e a faca na outra e berra: “da próxima vez, eu furo a bola e sei lá o que mais eu posso fazer com essa faca”! Diante de ameaça tão visceral às suas proles, as mães correm em direção à “bruxa” e a confrontam: uma a empurra e as demais começam a xingá-la. Uma viatura leva todas as mulheres para a delegacia.

O Sistema de Justiça as enquadra: a “bruxa” responderá por crime de ameaça; a mãe que empurrou, por vias de fato e as demais, por injúria. Qualquer que seja o desfecho — conciliação superficial, aplicação de penas alternativas ou, na pior das hipóteses, julgamento criminal — as responsabilidades recíprocas serão atribuídas e a vida seguirá sob o mesmo padrão relacional reproduzido no cenário do início deste artigo. Essa história tão cotidiana, que alimenta a pauta dos programas de populismo criminal dos canais de TV, nos convida a pensar o que, afinal, esperamos da justiça.

Há 20 anos, o TJDFT apoiou a possibilidade de trilharmos outros caminhos, outros desfechos, outros futuros. Desenvolvemos a mediação comunitária, em um formato absolutamente circular, dialógico e cooperativo. O que isso significa concretamente? No caso aqui narrado, as mães, as crianças, a “bruxa da rua” e a vizinhança foram convidadas a participar de uma mediação comunitária.

Ao contrário dos doutores da Justiça que falam difícil, vestem capas pretas nos palácios e reverenciam uma Deusa cega cuja função é separar o certo do errado, essa experiência radicalmente democrática optou por outro caminho. Iniciou capacitando mediadores comunitários que perguntam: “quem são vocês?”; “como vocês se relacionam”?; “quais são as suas necessidades e qual o papel do Estado diante delas?”; “como vocês gostariam de se organizar?”.

Perguntas de futuro. Não de reconstrução de passado tal qual um quebra-cabeças que nunca será o retrato de múltiplas verdades. Neste caso, as mães partilharam suas preocupações, as crianças expressaram seus desejos. A “bruxa da rua” disse que foi professora de arte (e aqui se explica o nome do seu felino favorito...) e que, desde que perdeu o seu filho ainda criança, não consegue conviver com os ruídos de vida com os quais as crianças insistem em desafiar os adultos que perderam a esperança. Ela disse que sabia — e, por óbvio, não apreciava — do seu apelido e que gostaria de ser reconhecida pelo seu nome, Dona Ana. Sensibilizada com a condição das mães, ofereceu sua casa para ministrar cursos de arte que pudessem gerar renda.

O poder público local foi desafiado a recuperar o terreno abandonado da esquina, em parceria com a comunidade. As crianças se comprometeram a criar um clubinho de futebol, embalados com a oferta de um morador, estudante de educação física que, na mediação comunitária, ofereceu-se para treiná-los no novo campinho. Dessa experiência emergiu um coletivo. Nasceu uma comunidade capaz de diagnosticar seus problemas, prescrever suas soluções, mobilizar-se para exigir do Estado os seus deveres e capaz de se solidarizar. Uma comunidade em comunhão.

Eu sei que a Justiça da Deusa Themis ainda é essencial, sobretudo em um país com tantas desigualdades, injustiças sociais e violências estruturais. Mas, a minha esperança é que, nos próximos 20 anos, eu possa convidá-lo, caro leitor, a refletir sobre como uma nova forma de se fazer justiça colaborou, há 40 anos, para ressignificar a nossa democracia. Adelante, Justiça Comunitária!


* Juíza coordenadora do Programa Justiça Comunitária