LUTO

Maradona, o mais argentino dos jogadores

''Um sentimento romântico em relação a esse passado parece ainda se perpetuar na Argentina. Um saudosismo marcado pela passionalidade e pelo inconformismo''

Correio Braziliense
postado em 01/12/2020 06:00
 (crédito: LUIS GANDARILLAS / AFP)
(crédito: LUIS GANDARILLAS / AFP)

SÉRGIO G. FREIRE - Jornalista


Ao ver as ruas de Buenos Aires lotadas em despedida a Maradona, o primeiro pensamento que pode surgir aos desavisados é achar que o mito em sua arena futebolística havia ajudado os menos favorecidos a suportar as tantas frustrações de um cotidiano árido.

Nos pés do craque, a personificação de tudo o que gostariam de ser, como país e cidadãos. Em retribuição ao sonho que lhes foi acalentado, surgiu o luto coletivo manifestado da mais pura forma latina, como outras vezes já se vira ao Sul das Américas.

A manifestação portenha e a Argentina merecem muito mais que uma análise a tiracolo, com algumas adaptações superficiais. Maradona e seu país possuem uma ligação com matizes peculiares, vinculados à tragédia e a um certo romantismo desencaixado dos tempos atuais.

Faço referência aqui à tragédia pensada pela ótica dos clássicos gregos, em que, ao caminho da glória, seguem-se as dificuldades tantas vezes incontornáveis. Para os antigos gregos, a vida se definia pelo final absurdo e sem explicação. Maradona fez do campo seu teatro clássico, com protagonismo inigualável entre seus contemporâneos. Ainda nos palcos de céu aberto, não virou coadjuvante, mas era nítido que, aos poucos, viveu mais do mito que da performance nos gramados. Deus na Napoli e na seleção; ícone do passado no Sevilha e Boca Junior, em sua segunda passagem.

A Argentina também viveu seu auge, nas duas primeiras décadas do século 20, quando possuía uma das maiores rendas per capitas do mundo, ainda que houvesse desigualdade social. O país era um dos maiores produtores agrícolas do mundo e o principal exportador de carne. A pujança desse período se apagou gradativamente ao longo de quase um século. A decepção sucedeu o mito de que padrões europeus seriam o futuro.

Um sentimento romântico em relação a esse passado parece ainda se perpetuar na Argentina. Um saudosismo marcado pela passionalidade e pelo inconformismo. E, nisso, a personalidade de Maradona, seus excessos, suas disputas políticas e sua retórica irônica e inflamada unem-se ao jeito de ser argentino. Comedimento parece não fazer parte da alma desse país. A intensidade marca seus heróis: Gardel, Evita Perón e, agora, Maradona, cada vez mais.

Digo até que o estilo de jogo de Maradona, com sua desenvoltura e galhardia, emanava romantismo, sentimentos exaltados de divina beleza. Um tango pode compor perfeitamente o pano de fundo de uma seleção de gols do craque. E não se afirme que serve para qualquer jogador argentino.

Com Messi, por exemplo, não há como se pensar no ritmo de Gardel. É jogador de outra beleza. Maradona é o clássico. Diego é Rafael e Michelangelo, jogava como quem pintava traços de esplendor que nos faziam enxergar além da realidade. Messi é o minimalista de jogo objetivo. Estaria mais para pinceladas um tanto contidas de Miró ou mesmo mais próximo de artistas concretos. Maradona seria um Victor Hugo, em que religiosidade e missão se unem para formar os Miseráveis. Messi parece mais com Flaubert ou Ernest Hemingway, com texto enxuto e objetivo, em que a crueza leva à qualidade literária.

Os mitos permanecem. É da sua natureza. O que mudam são as formas como as sociedades os interpretam, julgam e os assimilam ao longo do tempo. As imagens do luto coletivo manifestam plenamente o símbolo Maradona, hoje, em uma Argentina que passa por mais uma de suas tantas crises, com inflação, desemprego e credores externos a saldar, levando as classes médias a habitar periferias.

Peronistas e liberais se revezaram no poder nas últimas décadas, sem impedir a queda dos níveis sociais e econômicos. Expectativas frustradas. A Argentina parece viver em contínua turbulência. Nada mais propício para um mito avesso a convenções e pródigo em paixões, que consomem e eternizam. A mitologia extravasa o futebol e assume outros campos do imaginário argentino. O país não tem mais o craque a conflagrar disputas fora do gramado. Ficou o símbolo, o mito, quem sabe a inspirar caminhos ou a digerir o passado.

 

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