ELEIÇÕES

É mentira, Terta?

''Enfim, o tempo dirá qual caminho foi adotado nas escolhas feitas pela maioria de nós, eleitores e eleitoras: se valorizamos o voto como instrumento de mudança, elegendo candidatos e candidatas honestos e competentes, ou se mantivemos o comportamento de 'não é comigo', apostando novamente no Pantaleão da vez''

Correio Braziliense
postado em 07/12/2020 06:00

ORLANDO THOMÉ CORDEIRO - Consultor em estratégia 


Mês passado tivemos eleições municipais em que foram eleitos 5.567 prefeitos e 58.185 vereadores (o pleito em Macapá foi realizado ontem). Foram 49 dias de uma campanha eleitoral atípica, com poucas atividades presenciais de vulto em razão da pandemia. Somente uma coisa não mudou: a profusão de promessas para resolver os problemas da população sem deixar claro como tornar isso possível.

A maioria das candidaturas acabou por me lembrar Pantaleão, um dos centenas de personagens do genial Chico Anysio. Inspirado no protagonista do livro de Graciliano Ramos, Alexandre e Outros Heróis, Pantaleão é um caçador aposentado que vive na companhia de sua esposa Tertuliana, carinhosamente chamada de Terta. Sempre sentado em sua cadeira de balanço, passa o tempo contando ''causos'' inverossímeis e, ao final, diante da incredulidade do interlocutor, solicita a conivência de sua esposa, perguntando ''É mentira, Terta?'' para ser contemplado com a resposta ''Verdade''.

Essa analogia ajuda a explicar o ceticismo da maioria do eleitorado. Um exemplo foi o crescimento da abstenção. Comparando-se os dados deste ano com 2016, viu-se que no primeiro turno saímos de 17,5% para 23,1% e no 2º turno de 21% para 29,5%. Em alguns grandes centros esse número foi maior que a quantidade de votos do vitorioso. Outro exemplo é que parcela significativa do eleitorado votou em candidatos investigados por corrupção, confirmando uma pesquisa que citei em meu artigo de 30 de outubro.

Na mesma linha de raciocínio, pesquisa do Ibope na semana das eleições deste ano apontava o alto percentual de pessoas que ainda não decidira em quem votar para vereador, sendo 60% na cidade do Rio de Janeiro e 69% em São Paulo. Já um levantamento do Instituto Locomotiva em parceria com o RenovaBR indicava que 80% dos eleitores não se lembravam em quem tinham votado para vereador em 2016. E para completar, pesquisa do Data Poder realizada entre 23 e 25 de novembro apurou que 12% dos entrevistados não se lembravam em quem haviam votado para prefeito em 2020, apenas 10 dias após o pleito!

Esses dados são entendíveis, mas nada alentadores. Afinal, a partir de 1º de janeiro de 2021 a realidade chegará batendo com toda força às portas dos gabinetes dos eleitos. Serão grandes desafios, alguns já conhecidos, de natureza histórica e estrutural, e outros novos trazidos pelo coronavírus.

Como lidar com a queda da arrecadação em consequência da crise econômica que vem sendo experimentada desde 2016 e que se agravou em 2020? A maioria dos municípios brasileiros não consegue gerar receita própria suficiente para cobrir o conjunto de despesas, sendo absolutamente dependentes dos repasses dos governos federal e estaduais. Segundo o Índice Firjan de Gestão Fiscal de 2019, em 1.856 deles o quadro é ainda mais dramático: a receita própria não dá sequer para pagar as despesas de manutenção das respectivas estruturas administrativas! E a tendência é que no próximo ano mais municípios passem a integrar essa lista.

O que fazer frente à crescente demanda por serviços públicos de saúde? Esse já é o resultado decorrente tanto da pandemia quanto do aumento no número de pessoas que se viram obrigadas a abrir mão de seus planos de saúde. Aliás, há décadas essa área tem sido a maior preocupação da população.

Não bastassem os desafios supracitados, ainda será necessário enfrentar o grave quadro na área da educação com a combinação de dois problemas: de um lado, a indispensável recuperação do ano letivo de 2020 e, de outro, o aumento na procura por vagas em creches, pré-escolas e escolas pelas famílias que deixaram o ensino privado em função da perda de renda. Nossos indicadores educacionais são vergonhosos, chegando às raias do absurdo quando assistimos gestores públicos, nos três níveis de governo, comemorarem quando se alcança uma meta de 4,7 no IDEB!

E o que falar do saneamento básico? Temos 47% da população sem acesso à rede de esgoto e 16% sem água tratada! Mais uma vez, nas campanhas eleitorais pelo Brasil pouquíssimos candidatos tocaram no tema, algo lamentável, principalmente porque o novo marco legal do setor abre possibilidades concretas de se resolver essa tragédia nacional.

Enfim, o tempo dirá qual caminho foi adotado nas escolhas feitas pela maioria de nós, eleitores e eleitoras: se valorizamos o voto como instrumento de mudança, elegendo candidatos e candidatas honestos e competentes, ou se mantivemos o comportamento de ''não é comigo'', apostando novamente no Pantaleão da vez.

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