Recentemente, a empresa Magazine Luiza lançou um edital de ações afirmativas para a contratação de trainees exclusivo para negros/as. A iniciativa foi fortemente atacada judicial e socialmente nas redes sociais. Os críticos à iniciativa recusam-se a perceber que o acúmulo de capital proporcionado às famílias escravocratas permitiu a elas uma série de vantagens que impactaram diretamente no desenvolvimento socioeconômico de seus descendentes.
Eles não admitem que o sofrimento, a violência, o extermínio e a exclusão da população negra em razão do regime escravocrata e do racismo impactaram no desenvolvimento dessas famílias e impuseram-lhes desvantagens socioeconômicas fortemente presentes até hoje.
Entre os algozes da iniciativa, destacam-se a ação judicial de um defensor público federal contra o edital. Na ação, o defensor alegou independência funcional, ofensa aos direitos dos não negros, prática de racismo reverso (sic) e negou a dívida histórica da sociedade brasileira com a população negra.
Num malabarismo jurídico absolutamente desleal e intelectualmente desonesto, lançou mão das referências teóricas que são antirracistas, utilizou os avanços alcançados na legislação e jurisprudência dos tribunais no combate ao racismo para atacar a política afirmativa anunciada pelo Magazine Luiza.
Independência funcional exige limites, responsabilidade e coerência com a missão institucional do órgão. Racismo reverso não existe, ou melhor, o racismo de negro contra branco não existe porque o racismo é única e exclusivamente direcionado a minorias. Leituras básicas podem distinguir as diferenças conceituais entre racismo, preconceito e discriminação, que evitaria muitos desgastes e críticas injustas.
A peça jurídica desse defensor ilustra o preconceito, confusão de conceitos básicos sobre ações afirmativas, desconhecimento da história daqueles que negam o racismo institucionalizado na sociedade e agarram-se na bandeira da meritocracia para proteger seus privilégios, muitos deles construídos no contexto de uma sociedade forjada à base do racismo, desumanização, violência e escravização da população negra.
A Defensoria Pública possui um papel central na defesa dos interesses da população mais vulnerável e diante do cenário de exclusão social e econômica da população negra existente em nosso país, é inadmissível ver um defensor público atuar de forma contrária aos interesses da população negra, pois isso equivale a atuar contra interesses que a Constituição manda a própria instituição defender.
Quando analisamos diversos indicadores com recorte racial: violência, letalidade, educação, emprego, destacando os dados sobre emprego e renda, mais uma vez a desvantagem socioeconômica fica evidente. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Pnad Contínua, do IBGE, mostram que, em 2017, a renda dos brancos era 77% maior do que a renda dos negros. A desigualdade também aparece na ocupação de cargos gerenciais. Aproximadamente 70% deles são ocupados por brancos e menos de 30%, por negros.
No desemprego, a diferença também é gritante. Apesar de os negros representarem mais da metade da força de trabalho (55%), eles são praticamente dois terços (66%) dos desocupados e dos subutilizados e a maioria dos que sobrevivem no mercado informal de trabalho. A situação da renda reflete diretamente na distribuição da riqueza em nosso país. Entre os 10% mais ricos, 72% são brancos e 25%, negros. Já entre os 10% mais pobres, a proporção se inverte: 75% são negros e 23%, brancos.
Diante do enorme abismo racial no país, é mais do que evidente que o defensor público que ingressou com ação contra o edital da empresa Magazine Luiza agiu do lado errado e extrapolou os limites de sua independência funcional, o que torna inevitável que responda por seus atos administrativamente.
A Defensoria Pública tem papel central enquanto parceira nesta luta. Diversas entidades ligadas ao movimento negro e outras personalidades apresentaram uma representação à Corregedoria da Defensoria Pública da União (DPU) contra o defensor. Não permitiremos que manifestações preconceituosas de membros da instituição manchem o belo trabalho que a maioria dos defensores e defensoras desenvolve em todos o país em defesa de políticas para a inclusão e defesa da população negra.
*Marivaldo de Castro Pereira, advogado, mestre em direito pela USP, auditor federal, ex-secretário-executivo do Ministério da Justiça
*Artur Antônio dos Santos Araújo, bancário, mestre em filologia e língua portuguesa pela USP, especialista em gestão de políticas públicas pela UnB
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