Um grito de desabafo

CLAUDIA OLIVEIRA CONCEIÇÃO SANTOS Advogada

Correio Braziliense
postado em 18/12/2020 22:38
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)



Naquela manhã de dezembro, a aluna de 52 anos, negra, nordestina, esposa, mãe e trabalhadora braçal, estava em total euforia, radiante, alegre e feliz, pois faltava muito pouco para a realização de um grande sonho. Um sonho que muitas pessoas pobres e negras têm, mas que poucas ainda alcançam. Chegou o dia da apresentação do trabalho de conclusão do curso (TCC) sde direito, a graduação que aquela mulher negra sonhou por toda a sua vida.

Por ser órfã de pai e mãe desde os seis anos, não teve oportunidade de estudar quando jovem. Ela foi a décima de 11 irmãos, criada aos trancos e barrancos por uma tia, irmã de sua mãe. A tal tia tinha quatro filhos naturais e era desquitada do marido quando a irmã morreu e, por isso, resolveu ficar com as crianças, um total de oito sobrinhos mais quatro filhos. Eram 12 jovens e crianças para uma única mulher adulta criar, educar e proteger. Apesar de todas as dificuldades, todos sobreviveram e cada um seguiu seu caminho.

Naquela manhã de dezembro, a mulher negra vestiu sua melhor roupa, passou seu melhor perfume e, por ser negra, acreditou que seria um bom momento para colocar um lindo turbante africano na cabeça. Desta forma, além de se sentir bonita, estaria fazendo uma homenagem aos seus ancestrais, que faziam tanta falta na sua vida, mesmo depois de adulta.

Para ela era um dia especial, nenhum dos seus muitos irmãos conseguiu um diploma, sequer do ensino médio. Entre os 11 filhos, ela seria a primeira a dar esse orgulho aos seus pais falecidos. Então, após se aprontar, a mulher negra se dirigiu à universidade, cheia de orgulho de si mesma para a tão esperada, planejada e ensaiada apresentação do trabalho de conclusão do curso de direito.

Na apresentação, uma das professoras da banca, doutora em direito civil, perguntou para a mulher negra: “Por que você veio se apresentar fantasiada?”. Surpresa com a pergunta, a mulher negra respondeu que, com todo o conhecimento que a doutora tinha, muitos cursos, pós cursos, mestrado e até doutorado, ela sabia que aquele adereço em sua cabeça não era uma fantasia e, sim, um turbante, que é um símbolo da cultura africana.

A professora voltou a perguntar: “Você teria coragem de ir a uma sala de audiência com turbante?” Sem hesitação, a mulher negra respondeu que “sim”. Ela ainda acrescenta que se fosse a juíza da audiência e a mulher aparecesse com um turbante na cabeça, mandaria que os seguranças a retirassem da sala.

A mulher se sentiu revoltada, desnorteada e humilhada, mas, naquele momento, ela não poderia demonstrar fraqueza, tristeza nem revolta, pois tinha uma defesa para concluir e, finalmente, realizar o sonho de se tornar uma advogada.

Após engolir a seco toda a humilhação sofrida, a mulher negra terminou de apresentar seu trabalho de conclusão de curso, com o tema Guarda compartilhada de filhos de quatro patas. A mesma professora que a tinha humilhado e pisoteado antes, voltou a criticar, dizendo que este não era um tema digno de TCC de um curso de direito, e que a mulher negra, além de se fantasiar, ainda era preguiçosa, que nem se preocupou em procurar um tema digno do curso e que a Justiça brasileira não tinha tempo para analisar demandas vindas de casais desequilibrados que tratavam pets como crianças.

Nesse momento, a mulher negra sentiu-se totalmente desrespeitada, ofendida e humilhada, a dor era tão grande que se assemelhavam às chicotadas que suas ancestrais levaram no tronco na época da escravidão.

Um momento tão esperado, que tinha tudo para ser um dos dias mais felizes de sua vida, se tornou um dia de pura crueldade, humilhação, zombaria e, acima de tudo, racismo explícito. Até quando a cor da pele vai pesar mais do que o mérito e o caráter? O racismo está disfarçado em muitas situações do nosso dia a dia, sejam eles o racismo estrutural, institucional ou até mesmo os chamados microrracismos, situações aparentemente inofensivas, mas em que é possível identificar o conteúdo racista.

Esse relato é um convite à reflexão sobre o que se impõe às pessoas negras em situações que, para outras, é apenas mais uma etapa feliz da vida adulta. Por causa do racismo, não foi para aquela mulher negra. Este é apenas mais um dos inúmeros casos de racismo que ocorrem todos os dias em alguma parte do Brasil. Um crime cometido até por quem deveria zelar pelas leis.

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Indústria avança, apesar da falta de regulamentação para bem-estar dos suínos

PATRYCIA SATO Médica veterinária e presidente da Alianima

Nos últimos anos, assistimos ao fluxo do capital caminhar cada vez mais e de forma mais acelerada em direção a um modelo de economia de baixo carbono, mais sustentável. Esse movimento global, que prevê a alocação de capital alinhado aos princípios ESG (Environmental, Social and Governance), ganhou ainda mais força e escala entre investidores em 2020, com o coronavírus. Nesse contexto, o bem-estar animal se insere como uma questão relevante, que deve ganhar cada vez mais peso e força à medida em que evolui a consciência e a cobrança do consumidor por produtos que respeitem, também, a saúde dos animais.

Além da rejeição a práticas consideradas cruéis por um conflito ético, há diversas pesquisas que comprovam que o sofrimento animal impacta na qualidade do produto final. O sofrimento prolongado pode prejudicar no ganho de peso e, quanto mais estressado, mais debilitado fica seu sistema imunológico, deixando-o mais suscetível a doenças. No caso dos suínos, a porca matriz, uma vez inseminada, fica presa em uma cela individual, com espaço extremamente limitado que permite quase nenhuma movimentação, durante toda a fase de gestação, que dura quase quatro meses.

Além do desconforto físico, as porcas não conseguem interagir entre si e explorar o ambiente, nem construir ninho antes do parto. Como se não bastasse, problemas de saúde — como lesão nas patas, infecções urinárias, atrofia muscular e distúrbios comportamentais — são frequentes por conta da falta de atividade física. Considerado ultrapassado, esse sistema está condenado a ser substituído por parte relevante da indústria nacional produtora de carne suína pelo alojamento das porcas em baias coletivas até 2029.

Essa é a boa notícia identificada pelo Observatório Suíno 2020, estudo lançado em dezembro pela Alianima, ONG brasileira que atua na defesa do bem-estar animal. O estudo aponta o estágio de transição das empresas com compromissos públicos de banir celas de gestação no Brasil. São 10 companhias no total — entre produtoras de carne suína e redes de restaurantes —, que, além de terem estipulado prazos que variam entre 2022 a 2029 para o fim das celas gestacionais, foram analisadas em outros quesitos que causam sofrimento ao animal. Um dos pontos críticos são as mutilações em leitões. Castração cirúrgica, corte de cauda, dentes e orelha (mossa) — para identificação individual — são procedimentos corriqueiros na suinocultura, realizados sem nenhuma medicação analgésica ou anestésica.

A União Europeia é referência nesta agenda, embora ainda precise evoluir em alguns pontos. A legislação europeia permite, por exemplo, que as porcas fiquem nas gaiolas nas primeiras quatro semanas de gestação, por receio de abortos e retornos ao cio, o que também pode ser contornado, como apontam diversas pesquisas. A má notícia é que, no Brasil, falta regulamentação por parte do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O governo brasileiro ensaia a adoção de uma legislação para essa questão desde 2018, com a edição de instrução normativa de bem-estar na produção de suínos. O texto da minuta, no entanto, não está alinhado às tendências globais e aos compromissos já firmados pela suinocultura brasileira.

Em agosto passado, Alianima e outras organizações, com apoio da Comissão de Defesa Animal da OAB/SP, enviaram posicionamento ao Ministério da Agricultura com recomendações de ajustes ao texto. O principal ponto contestado é o prazo de 25 anos para os produtores se adequarem à gestação coletiva, considerado excessivamente longo, muito além dos estabelecidos voluntariamente pelas empresas que têm compromissos públicos. Da mesma forma, é muito extenso o prazo de 10 anos para banir da indústria duas das práticas que causam mais dor aos animais: castração sem uso de anestesia e analgesia e mossa. Especialmente se considerarmos que há, hoje, alternativas viáveis, como a imunocastração e o uso de brincos. Há preocupação ainda com a permissão do corte de cauda até três dias de idade sem o uso de anestésicos e analgésicos e o descarte de leitões com baixo peso ao nascer.

É papel do Ministério da Agricultura estimular a transição e não retardar o processo com prazos tão extensos. Quarto maior produtor e quarto maior exportador de carne suína do mundo, a indústria nacional precisa liderar esse processo de transição desde já, sob pena de perder competitividade, especialmente, no exterior. O Observatório Suíno 2020 traz luz não só ao mercado de agronegócio, como também aos consumidores, importantes agentes de pressão para a indústria e investidores.

 

Visto, lido e ouvido

Desde 1960 Circe Cunha (interina) circecunha.df@dabr.com.br

Sonho e realidade

Uma coisa é certa: superada a questão da pandemia, se é que isso vá ocorrer algum dia, de forma definitiva, os cidadãos brasileiros estarão, na sua maioria, vacinados. Ao menos no que diz respeito à onda de politicagem que envolveu todo esse processo, desde março. Com isso, fica mais uma vez confirmado que há males que vêm para o bem, ou pelo menos nos ensinam a optar por caminhos mais claros e seguros.

A pandemia, as mortes e as internações seguidas, que nos aproximam da triste marca de 200 mil óbitos, não tiveram, por sua gravidade, o condão de unir a nação, por conta exclusiva das disputas que se seguiram em torno do assunto, protagonizadas exclusivamente por nossas lideranças políticas. O mais espantoso é que toda essa polêmica criada, do início ao fim, parece ter sido motivada apenas por disputas políticas, tanto nas eleições municipais, quanto nas disputas futuras de 2022.

O mais surreal é que, em meio a esse banzé, a questão da pandemia e das potenciais vacinas, ficou em segundo plano. Trata-se, aqui, de uma discussão que não tem levado em conta as agruras e incertezas, mas tão somente a possibilidade dos diversos grupos políticos se ajeitarem e fortalecerem suas posições de mando, além dos laboratórios, é claro. O pior, se é que possa haver alguma piora nessa questão, é que nenhum dos lados parece ter razão nessa briga.

Para complicar ainda mais o que, em si, já é um quiprocó infernal, até mesmo o Supremo foi envolvido nessa disputa e, como já tem sido costume, errando por último, ao criar uma espécie de obrigatoriedade e sanções para aqueles brasileiros que se recusarem a tomar a vacina.

Dois fatos absolutamente comprovados estão diretamente ligados à questão da pandemia: o primeiro é que há muitíssimo dinheiro envolvido em torno dessa questão, sendo que boa parte vai desaparecer nas brumas de uma pandemia totalmente atípica. O segundo é a pressa com que as pesquisas e os laboratórios parecem ter encontrado resposta para um problema, que, no médio e longos prazos, sabidamente cinco anos, podem ter seus efeitos colaterais e trágicos espalhados por centenas de milhões de indivíduos.

Todos os testes da chamada terceira fase foram acelerados, o que é, em si, e segundo a metodologia científica, um sinal de alerta. Não há como negar que estamos ainda no escuro, tateando e em busca da chave que possa abrir os porões dessa pandemia. As únicas certezas, até aqui, são que o país onde surgiu essa virose, coincidentemente, tem sido o que mais tem lucrado com a pandemia e o mais refratário a que investigações isentas sejam realizadas.

Há, em todo esse assunto, um roteiro que precisa, ainda, ser colocado diante da realidade. De certo, até o momento, temos que separar os “lucros políticos” que os diversos grupos, no Brasil, vão retirar dessa pandemia e os lucros argentários que países diversos, com a China no topo, estão obtendo com todo esse pesadelo.

Para os roteiristas dessa trama surreal, a realidade, por sua complexidade, tem ido muito mais além do que qualquer ficção, situando esse drama global, na fronteira que divide a vida real dos sonhos mais perturbadores.

 

A frase que foi pronunciada

“Dinheiro perdido, nada perdido; Saúde perdida, muito perdido; Caráter perdido, tudo perdido”
Provérbio Chinês


Idosos
Juliana Seidl prepara a turma do ano que vem para atendimento individual como orientadora de carreira e aposentadoria. Veja no Blog do Ari Cunha a palestra ministrada Reinvenção na Carreira e Projeto de Vida, a convite da Universidade Corporativa dos Correios.


Consome dor
Nos velhos tempos da capital, as donas de casa exerciam o poder que têm. O abuso de preços dos supermercados era logo impedido com o boicote. Sem internet, conseguiam se mobilizar para frear a alta injustificada de preços. Numa pandemia, seria o momento de baratear, não de diminuir os produtos nas embalagens e precificar em dobro.


Evolução
A situação do Teatro Nacional Claudio Santoro é de abandono total. Sem sensibilidade para a cultura, o GDF vai precisar responder ao Ministério Público do DF o que foi feito até agora na sala de concertos. A interdição do local aconteceu no início da pandemia e a orquestra do teatro está desabrigada há anos. Não dá para entender. O governador Ibaneis Rocha já viajou tantas vezes para o exterior. Poderia ter trazido, na bagagem, a consciência de que a cultura enobrece o governo.


História de Brasília

Esse novo prédio ficará da altura da rampa, numa extensão de duzentos metros, e conterá novas salas para comissões e um escritório para cada deputado e senador.
(Publicado em 20/01/1962)

 

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