Naquela manhã de dezembro, a aluna de 52 anos, negra, nordestina, esposa, mãe e trabalhadora braçal, estava em total euforia, radiante, alegre e feliz, pois faltava muito pouco para a realização de um grande sonho. Um sonho que muitas pessoas pobres e negras têm, mas que poucas ainda alcançam. Chegou o dia da apresentação do trabalho de conclusão do curso (TCC) de direito, a graduação que aquela mulher negra sonhou por toda a sua vida.
Por ser órfã de pai e mãe desde os seis anos, não teve oportunidade de estudar quando jovem. Ela foi a décima de 11 irmãos, criada aos trancos e barrancos por uma tia, irmã de sua mãe. A tal tia tinha quatro filhos naturais e era desquitada do marido quando a irmã morreu e, por isso, resolveu ficar com as crianças, um total de oito sobrinhos mais quatro filhos. Eram 12 jovens e crianças para uma única mulher adulta criar, educar e proteger. Apesar de todas as dificuldades, todos sobreviveram e cada um seguiu seu caminho.
Naquela manhã de dezembro, a mulher negra vestiu sua melhor roupa, passou seu melhor perfume e, por ser negra, acreditou que seria um bom momento para colocar um lindo turbante africano na cabeça. Desta forma, além de se sentir bonita, estaria fazendo uma homenagem aos seus ancestrais, que faziam tanta falta na sua vida, mesmo depois de adulta.
Para ela era um dia especial, nenhum dos seus muitos irmãos conseguiu um diploma, sequer do ensino médio. Entre os 11 filhos, ela seria a primeira a dar esse orgulho aos seus pais falecidos. Então, após se aprontar, a mulher negra se dirigiu à universidade, cheia de orgulho de si mesma para a tão esperada, planejada e ensaiada apresentação do trabalho de conclusão do curso de direito.
Na apresentação, uma das professoras da banca, doutora em direito civil, perguntou para a mulher negra: “Por que você veio se apresentar fantasiada?”. Surpresa com a pergunta, a mulher negra respondeu que, com todo o conhecimento que a doutora tinha, muitos cursos, pós cursos, mestrado e até doutorado, ela sabia que aquele adereço em sua cabeça não era uma fantasia e, sim, um turbante, que é um símbolo da cultura africana.
A professora voltou a perguntar: “Você teria coragem de ir a uma sala de audiência com turbante?” Sem hesitação, a mulher negra respondeu que “sim”. Ela ainda acrescenta que se fosse a juíza da audiência e a mulher aparecesse com um turbante na cabeça, mandaria que os seguranças a retirassem da sala.
A mulher se sentiu revoltada, desnorteada e humilhada, mas, naquele momento, ela não poderia demonstrar fraqueza, tristeza nem revolta, pois tinha uma defesa para concluir e, finalmente, realizar o sonho de se tornar uma advogada.
Após engolir a seco toda a humilhação sofrida, a mulher negra terminou de apresentar seu trabalho de conclusão de curso, com o tema Guarda compartilhada de filhos de quatro patas. A mesma professora que a tinha humilhado e pisoteado antes, voltou a criticar, dizendo que este não era um tema digno de TCC de um curso de direito, e que a mulher negra, além de se fantasiar, ainda era preguiçosa, que nem se preocupou em procurar um tema digno do curso e que a Justiça brasileira não tinha tempo para analisar demandas vindas de casais desequilibrados que tratavam pets como crianças.
Nesse momento, a mulher negra sentiu-se totalmente desrespeitada, ofendida e humilhada, a dor era tão grande que se assemelhavam às chicotadas que suas ancestrais levaram no tronco na época da escravidão.
Um momento tão esperado, que tinha tudo para ser um dos dias mais felizes de sua vida, se tornou um dia de pura crueldade, humilhação, zombaria e, acima de tudo, racismo explícito. Até quando a cor da pele vai pesar mais do que o mérito e o caráter? O racismo está disfarçado em muitas situações do nosso dia a dia, sejam eles o racismo estrutural, institucional ou até mesmo os chamados microrracismos, situações aparentemente inofensivas, mas em que é possível identificar o conteúdo racista.
Esse relato é um convite à reflexão sobre o que se impõe às pessoas negras em situações que, para outras, é apenas mais uma etapa feliz da vida adulta. Por causa do racismo, não foi para aquela mulher negra. Este é apenas mais um dos inúmeros casos de racismo que ocorrem todos os dias em alguma parte do Brasil. Um crime cometido até por quem deveria zelar pelas leis.
* Cláudia Oliveira Conceição Santos é advogada
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