Livro: objeto e resistência poética na pandemia

» Paulo José Cunha Jornalista
professor e escritor
postado em 03/01/2021 21:45

O poeta Luís Turiba chega aos 70 anos com a agitação e o entusiasmo de um iniciante nas artimanhas do verso. Ele não se enquadra em qualquer modelo de poetas clássicos, esses que escrevem poemas, publicam-nos em livros e se dão por satisfeitos. Pelo contrário. Turiba exerce a pulsão do verso num patamar que extrapola até mesmo as formas convencionais dos suportes em que, habitualmente, a poesia se assenta. Isso, desde a década de 80, quando liderou a publicação da revista Bric-a-Brac, na qual jovens poetas de Brasília estreavam ou abriam espaços com os próprios meios. Turiba se enquadra entre os poetas da resistência. Não se entregou à paralisia imposta pelo recolhimento compulsório imposto pela covid. Pelo contrário... novamente. Aproveitou a quarentena para experimentar inovadoras formas de intervenção, bem no espírito dos perigosos anos 70, quando jornalistas, poetas e artistas plásticos enfrentaram as resistências impostas pelo regime militar escapando pela tangente da imprensa alternativa. Acompanhei de perto, naquela época, o esforço coletivo para a concretização do jornal Cidade Livre, onde se publicavam as matérias cortadas pela censura da época. Ou na própria Bric-a-Brac, revista de poesia que praticou ousadias inimagináveis, como arrancar do poeta Manoel de Barros a melhor entrevista que concedeu em toda a sua vida.
Agora, o atrevimento incontido converteu o poeta Turiba em artesão da própria obra. Com apoio da companheira Luca — “parceria, amor e arte também na pandemia”, como diz a dedicatória —, o poeta decidiu criar seu novo livro com as próprias mãos. Armou-se de tesoura, estilete, cola, tinta, pedaços de papelão obtidos a partir do desmanche de caixas encontradas na rua e de uma impressora. Num ateliê improvisado, vem produzindo, um a um, os exemplares desse petardo poético que, desde o título, contém uma dose maciça de nitroglicerina: Se virem, terráqueos!
Em pouco mais de 40 páginas, o livro, cuja capa é feita de papelão reciclado, envernizado e desenhado, converte-o no que se conhece como livro-objeto, que é quando o suporte físico cumpre um papel de informação adicional. Nas artes plásticas é o que acontece, por exemplo, quando se tem contato com a obra Os Bichos, de Lygia Clark, em que chapas metálicas articuladas reagem ao toque e ao manuseio. Os poetas concretos e neoconcretos dos anos 50/60 lançaram mão desse recurso para, assim, abrir novas perspectivas de interação. O livro-objeto percorre caminho semelhante. Os mais famosos foram os de Augusto de Campos e Julio Plaza (Poemóbiles, Objetos Poemas e Caixa Preta).
Em Se virem, Terráqueos, Turiba igualmente oferece ao leitor a possibilidade de uma interação tátil com a obra, a exploração de possibilidades de apreciação a partir da própria manipulação, as sensações das texturas e das colagens. Assim, a obra por si mesma já transmite a ideia matriz de resistência, o recado de que é preciso reagir, apesar das dificuldades, nem que a luta tenha de ser feita de forma artesanal. Porque o importante é resistir, seja lá como for. A pobreza dos materiais empregados já é um símbolo de resistência.
No miolo, os poemas não poderiam ir por outro caminho. O primeiro já dá uma pista do que vem pela frente: “a peste/posta à prova/desaprova/o teste/do texto/testemunha/ocular/da história”. Para, logo no poema seguinte, em que fala de “mais um dia cheirando a cadáveres na tv”, soltar a bomba e sair de perto e aguardar até os últimos versos: “Deus está de férias/ - se virem... terráqueos!” Com a precisão de um tiro de fuzil com mira telescópica, Turiba aponta seu verso tanto para a pandemia quanto para o que chama de “pandemônio social/político que tomou conta do Brasil”. Como no poema concreto COR CO VÍRUS, no qual insinua que o Cristo Redentor também pegou a covid. A provocação continua com a apropriação do momento dramático dos mais carentes que não conseguiram receber o auxílio-emergencial por não terem CPF, e da descoberta de uma assonância que poderia passar despercebida, mas não a um poeta de faro afiado como ele. Leva o título de “sem nem”, e diz, secamente: “o sem cê-/pê-éfe nem pro/pê-éfe tem”.
Para não continuar dando spoiler, uma última referência, agora, ao poema As 100 mil mortes, escrito quando o poeta supunha que o número de óbitos ficaria em uma centena, talvez um pouco mais. Nem o melhor faro poético perceberia que em pouco tempo o número de covas, praticamente, já dobrou. Nesse texto notável e sensível, que foi musicado por 10 vozes, num poema-vídeo que pode ser acessado por meio de um link mencionado no livro, Turiba chora a dor dos que perderam parentes, amigos ou conhecidos para a pandemia (100 mil rastros de saudade). E lamenta, quase num grito: “pobre país sem epitáfio/no incauto poder do abuso/onde jaz o desprezo eterno ao luto”.
Obviamente, o livro não está nas livrarias, mas pode ser obtido diretamente com o poeta, ao custo de R$ 50, incluindo as despesas de correio. Basta enviar um e-mail para: turibapoeta@gmail.com.

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